Na condição de crítico do Observatório da Imprensa dos mais ácidos e freqüentes nos últimos anos, se não o mais ácido e freqüente, sinto-me no dever de tentar compor um retrato fiel de um momento do jornalismo brasileiro de um tipo que tem sido cada vez mais raro neste país. Refiro-me ao programa do Observatório da Imprensa na TV que foi apresentado na noite da última terça-feira (5/6) e que me fez pensar nas expressões ‘radicalização do bom jornalismo’ ou ‘bom jornalismo levado às últimas conseqüências’.
O tema do programa foi a crise política internacional gerada pela decisão do governo da Venezuela, presidido por Hugo Rafael Chávez Frías, de não renovar a concessão de faixa de transmissão no espectro radioelétrico daquele país à Radio Caracas Televisión (RCTV), do empresário Marcel Granier.
Para debater o tema, o coordenador do projeto Observatório da Imprensa, jornalista Alberto Dines, crítico acerbo e freqüente do governo de Hugo Chávez e de outros governantes de esquerda que têm ascendido ao poder na América Latina, incluído aí o presidente Lula, promoveu um programa em que suas opiniões sobre o assunto de maneira nenhuma impediram o contraditório. O único convidado do programa que teceu um discurso canhestro, eivado de imprecisões e de de falseamentos dos fatos, foi desmascarado, de forma surpreendente, por outro convidado que eu tinha como insuspeito de vir a se portar com a seriedade com que se portou. E até nesse ponto o programa do OI na TV foi bom, pois sem a presença do participante que reverberou o que considero mentiras midiáticas, não teria sido possível produzir um debate tão esclarecedor.
Segundo transcrição do programa feito no portal do OI na internet pela jornalista Karla Candeia, ‘participaram do debate, em Brasília, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM); em São Paulo, os jornalistas Renato Rovai e Roberto Lameirinhas, subeditor de Internacional do Estado de S.Paulo; e no estúdio do Rio, o professor de relações internacionais Williams Gonçalves, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF)’. Finalmente, por telefone, direto de Caracas, participaram ‘o jornalista e professor da Universidade Central da Venezuela Boris Muñoz’ e ‘o vice-presidente de informação da RCTV, Alberto Sapene’.
‘Desviar a atenção’
Escrevo para comemorar o belo programa mediado por Alberto Dines, mas também para protestar contra a sua péssima transcrição, feita pela jornalista Karla Candeia. Não digo que foi intencionalmente, porque não a conheço, mas posso assegurar que omitiu, distorceu e até fabricou alguns fatos que não ocorreram no programa, o que torna tal transcrição totalmente inaceitável.
O programa do Observatório teve o cuidado de convidar duas pessoas que desde o início do debate já demonstraram divergir da teoria de que a não-renovação da concessão à RCTV representaria violência inaceitável contra a liberdade de expressão, e lembraram que essa não-renovação tem justificativas que não podem ser ignoradas, como a da participação da RCTV na tentativa frustrada de golpe de Estado em abril de 2002. Essas vozes destoantes foram as do jornalista Renato Rovai e do professor Williams Gonçalves.
Do lado dos que defendem a teoria de que a Venezuela acaba de ser vítima de um ato autoritário, ‘ilegal’ e que atenta contra a liberdade de expressão, nos primeiros desdobramentos do programa podia-se contabilizar o próprio Alberto Dines, o indefectível senador Arthur Virgílio, o professor Boris Muñoz e o segundo homem da RCTV, o vice-presidente da emissora, Eduardo Sapene.
Em minha opinião, já que a transcritora do programa, Karla Candeia, emitiu opiniões como a de que Chávez organizou shows populares em comemoração ao início do canal estatal que substituiu a RCTV com a finalidade de ‘desviar a atenção do público’, ela poderia, desde pronto, deixar claras as posições assumidas por cada um dos debatedores. Essa é a primeira e mais branda omissão contra a qual me rebelo.
As omissões da jornalista e transcritora do programa do OI em tela vão piorando até chegarmos à fabricação de ao menos um fato.
Seis eleições
O senador Arthur Virgílio – aquele que queria bater (literalmente) no presidente Lula – teve uma participação importantíssima no programa do Observatório na TV. Ele reverberou o bom e velho discurso midiático ao opinar que ‘Chávez é exemplo do tradicional ditador latino-americano’ que ‘esmaga as oposições, esmaga a manifestação da imprensa, aos poucos vai implantando uma ditadura, e se implantar a ditadura entra em conflito armado com algum vizinho seu’. Era necessário colocar esse discurso na mesa, pois ele vem dominando a quase totalidade dos grandes meios de comunicação, e o senador tucano cumpriu essa tarefa como dele se esperava, ou seja, fidedignamente.
O professor venezuelano que participou do programa por telefone, Boris Muñoz, também fez a parte dele expressando opiniões contra Chávez, porém de forma mais comedida, ressaltando, inclusive, como positiva a decisão chavista de negociar com a parte dos estudantes venezuelanos que tem se posicionado contra o governo. Nesse ponto, não houve problema na transcrição da jornalista Candeia.
Os problemas começaram quando ela tocou na participação do vice-presidente da RCTV, Eduardo Sapene. Não foi relatado um ponto do programa claramente constrangedor para os participantes alinhados com o discurso anti-Chávez. Dines perguntou a Sapene como ele respondia às acusações de que a RCTV teria não só participado como sido uma das cabeças da tentativa frustrada de golpe de Estado em 2002. Sapene, alegando que ‘não estava ouvindo’ direito o que Dines dizia devido a problemas no telefone que não ocorreram com Boris Muñoz, esquivou-se de responder e se ateve à cantilena que sua emissora e seus defensores vêm entoando contra Chávez, o que produziu um silêncio ensurdecedor entre os debatedores.
O auge dos problemas da transcrição da jornalista Candeia foi no seguinte ponto: o senador Arthur Virgílio, a certa altura do programa, afirmou que ‘Chávez ganhou as eleições sem a participação da oposição, com milícias armadas nas ruas e num clima de terrorismo político’. Fiquei estupefato. Aquilo não era verdade. Chávez venceu seis eleições em nove anos e todas elas foram referendadas por centenas de observadores internacionais de todas as partes do mundo e reconhecidas por todos os governos, inclusive pelo americano. Esperava que o jornalista Renato Rovai ou que o professor Willians Gonçalves desmentissem o que o senador tucano acabara de dizer, mas, para minha surpresa, o desmentido veio de ninguém mais, ninguém menos do que o jornalista… do Estadão!
Ganhos éticos
Roberto Lameirinhas, subeditor de Internacional do jornal O Estado de S.Paulo, disse que era preciso desfazer ‘um mito’ que acabara de ser repercutido pelo senador Arthur Virgílio, de que ‘Chávez ganhou as eleições sem a participação da oposição, com milícias armadas nas ruas e num clima de terrorismo político’. Como se sabe, o Estadão está entre os órgãos de imprensa mais anti-Chávez de todos, e essa teoria de que ele é um ditador e de que ganhou as sucessivas eleições que ganhou por meio de fraudes eleitorais e ameaças físicas à oposição teve espaço muitas vezes no jornal em que ele trabalha, tanto nas seções de cartas de leitores quanto em artigos e editoriais. Lameirinhas, no entanto, disse, com coragem e honestidade surpreendentes, da comprovação da lisura das eleições venezuelanas por observadores internacionais e do apoio popular que Chávez tem na Venezuela, rejeitando as afirmações de Arthur Virgílio sobre eleições ilegítimas e, assim, causando-lhe grande constrangimento.
O aspecto mais surpreendente e inaceitável da péssima transcrição da jornalista Karla Candeia reside nesse ponto. Vejam o que ela escreveu:
‘Renato Rovai disse que o debate da política na mídia não se dá só na Venezuela, mas também no Brasil: `A politização da política dos veículos de comunicação levou, no ano passado, a um descrédito muito grande de certos veículos´. E discordou [Rovai] da opinião de Virgílio de que Chávez é um ditador. Roberto Lameirinhas contou que a sociedade venezuelana é bastante dividida socialmente – não por culpa de Chávez –, e por isso os conflitos de classe se acirram – por culpa de Chávez. Disse que a RCTV e a Cablevisión eram praticamente os únicos meios nos quais as diferentes classes sociais conviviam. E diagnosticou: `Esse ambiente parece abalado. Gostaria de fazer um estudo para descobrir as conseqüências disso´’.
Como se vê, a jornalista Karla Candeia não creditou ao jornalista do Estadão a afirmação de que Chávez não é um ditador, omitiu a amplitude da crítica dele à fala de Arthur Virgílio e, como se não bastasse, ainda atribuiu a crítica à fala do tucano ao jornalista Renato Rovai, relatando só a parte contrária a Chávez da fala de Lameirinha.
De uma forma ou de outra, não se pode ignorar que o programa do OI na TV foi magnífico. Não tenho a menor dúvida de que qualquer telespectador que vinha comprando a versão da grande imprensa e assistiu àquele programa, teve muitas surpresas ao tomar contato com pontos de vista que têm sido amplamente sonegados por essa mesma grande imprensa.
No sentido de não se perder boa parte dos ganhos éticos, democráticos e de bom jornalismo propiciados pelo programa do OI na TV da última terça-feira, e para impedir que os leitores do site do OI na internet sejam desinformados por um retrato deturpado do que foi aquele belo programa, sugiro ao Observatório dar espaço às informações aqui contidas com a maior brevidade possível.
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Karla Candeia responde
Prezado Eduardo, obrigada por suas observações. Certamente discordamos acerca de aspectos da matéria sobre o programa, mas é a diversidade de pontos de vista que deixa o debate livre para ir além. E isso é o mais importante. (K.C.)
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Comerciante, São Paulo, SP; http://edu.guim.blog.uol.com.br