Em meio ao tumulto da chegada do ex-goleiro Bruno e seu amigo Macarrão (acusados do desaparecimento da jovem Eliza Samudio) ao Rio de Janeiro, há exatas duas semanas, a imagem dos dois segurando, cada um, a Bíblia, não me sai da cabeça. Não quero especular sobre o que aconteceu, se eles são culpados ou inocentes. O que incomoda é imaginar como se dão – e porquê – esses ‘arroubos de fé’ em pessoas acusadas de crimes bárbaros. Pois bem: a história que envolve os três personagens é marcada por insultos à conduta religiosa até ao mais desavisado dos crédulos. Bruno conheceu Eliza em uma das orgias organizadas por Macarrão, a pedido do amigo-jogador; depois que a moça ficou grávida, foi à delegacia acusá-los de sequestro e tentativa de aborto; pouco tempo depois, o país ficou estarrecido diante das declarações de uma das testemunhas que garantiu que Bruno, Macarrão mais não sei quantas pessoas, infligiram sofrimentos à suposta mãe do filho de Bruno, dignos de um filme de terror.
Em nenhum momento a imprensa divulgou uma declaração religiosa de Bruno. Nem antes nem depois do acontecido. Até onde se sabe, as questões da fé não eram uma prioridade para o ex-capitão do time do Flamengo. Isso sem citar o completo desprezo com que os acusados – e o advogado de defesa – lidam com as denúncias de assassinato, estrangulamento, sumiço do corpo, que serviu para banquete de cães… Mas, ao serem transferidos do presídio de Bangu para Belo Horizonte, ainda em julho, Bruno e Macarrão portavam vistosas Bíblias nas mãos. A mesma imagem se repetiu agora, no retorno ao Rio, para a audiência que apura o sequestro de Eliza.
O que a defesa dos acusados quer dizer ao expor esta ‘aproximação’ do Evangelho? Que eles se converteram – assim como fazem milhares de traficantes, homicidas, estupradores – nas prisões do Rio de Janeiro? Os advogados de defesa acreditam que portar uma Bíblia é entendido como sinônimo de inocência ou passaporte para supostos injustiçados? Será que levar uma Bíblia para um julgamento interfere na avaliação jurídica do caso e das provas? Ou a estratégia é suscitar na opinião pública a imagem de dois jovens indefesos diante de acusações mentirosas?
Advogados utilizam esse método
Muitos dos que defendem a salvação – e o Reino dos Céus – para os piores criminosos vão levantar dizendo que todos têm o direito de se arrepender de seus crimes. Certamente que em muitos casos o arrependimento pode até acontecer de forma sincera. Mas observem o quanto de incomum e inusitado tem nestes arroubos de supostas leituras dos Evangelhos. Não parece que a Bíblia, numa situação dessas, fica meio que deslocada de seu sentido? Mesmo que os acusados tenham se convertido sinceramente, isso não seria uma questão de foro íntimo, pessoal, de comunhão com Deus? Então por que expor o livro sagrado dos cristãos às centenas de fotógrafos e repórteres que, por força do ofício, necessariamente estariam ali? Será que esta não seria uma imagem calculada pelo advogado dos acusados para impactar os mais ingênuos e sugerir, ao menos, uma mudança tardia de conduta?
Um dos maiores dogmas (e, por que não, mistérios) da religiosidade é exatamente a questão salvífica, que se dá após a vida. O que chama a atenção, neste caso específico, é aposta da defesa de Bruno e Macarrão em uma suposta conversão às Escrituras que poderá, de certo modo, aplacar a revolta da população, e ainda servir para salvá-los das acusações de sequestro, tentativa de aborto, assassinato e ocultação de cadáver, entre outros – ou atenuar suas possíveis culpas – ainda neste plano da existência. Interessante notar que muitos advogados já se utilizaram deste método para inocentar ou conseguir progressão de regime e/ou atenuante por bom comportamento para seus clientes. Quase sempre dá certo.
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Jornalista e pesquisadora na área de Religião