Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os americanos não são muito melhores

A resposta de Richard Pedicini ao artigo ‘Jornalista do NYT deita e rola sobre o caos aéreo‘, publicado neste Observatório, enseja uma nova oportunidade de trazer a público os fatores que teriam concorrido para a queda do vôo 1907 da Gol, em 29 de setembro do ano passado. Jornalista americano radicado no Brasil, Pedicini traduz para o inglês os artigos por aqui veiculados, enviando-os ao jornalista do New York Times Joe Sharkey, que, sobrevivente do Legacy que se chocou contra o Boeing da Gol, tem-se dedicado, em seus blogs – Joe Sharkey at Large e Joe Sharkey: Brazil – a defender os pilotos da ExcelAir, seus compatriotas e, em sua opinião pueril, ‘heróis’.

Joe Sharkey autoperfila-se como ‘veterano do Vietnã’. Sua nova missão é resgatar os pilotos Joe Lepore e Jan Paladino das responsabilidades que lhes competem nesse episódio. Joe&Jan seriam vítimas do caos aéreo brasileiro. ‘Simples assim’, como diria um advogado contratado da dupla. Desconhece-se a formação jurídica de Joe Sharkey. Importa dizer que ele supostamente trabalha como jornalista, embora escreva como advogado. Digo ‘supostamente’ por saber que todo jornalista tem o dever de apurar os fatos em sua complexidade, sem pinçar esta ou aquela informação tão-somente para defender as suas teses.

Pedicini reclama do jornalismo brasileiro. Eu também. Temos, desde já, a mesma visão das generalidades. Não seria abuso dizer que, em média, o jornalismo brasileiro ‘sharkeia’ sempre que pode. É um terreno em que os eleitos estão sempre limpos, ainda que cometam. É um charco em que os sujos são ‘autolimpantes’, ainda que rastejem.

A resposta de Pedicini, ‘Cobertos de razão a 37 mil pés’, é, de igual modo, um desses exemplares que servem a uma meia-dúzia, nunca à totalidade. Servem à versão entranhada, jamais à verdade dos fatos. Servem ao engajamento, jamais à lucidez. Informa-nos o jornalista: ‘(sic) O CPI disse que aqueles que saem em defesa dos pilotos estão cobertos não com a bandeira, mas com razão.’

O conteúdo dessa afirmação não é, absolutamente, verdadeiro, o que causa perplexidade. Trata-se, no máximo, e com grande condescendência, de uma meia-verdade, como veremos adiante. E é preciso desconfiar das intenções de quem não apenas se satisfaz com meias-verdades, mas ainda se presta a disseminá-las. Aqui, como lá, devemos nos acautelar. Pela amostra, vale contestar o dito humorístico para concluir: em matéria de jornalismo, os americanos não são muito melhores.

Míssil terra-terra

No artigo contestado, bati-me contra a defesa incondicional da dupla Joe&Jan. Faria algo semelhante, se, de outro modo, se lhes atirasse sobre os ombros todo o ônus da responsabilidade, desprezando-se o que aconteceu em solo.

Diversamente e em contraste, os canhões de Sharkey e Pedicini sempre estarão apontados para a terra.

No afã de inocentar os dois pilotos, custe o que custar (como se essa fosse uma prerrogativa jornalística), assim escreveu Pedicini em seu arrazoado:

‘O coronel-aviador Rufino (sic) da Cenipa, presidente da comissão (sic) investigando o acidente, foi questionado na CPI sobre como teria, enquanto piloto, interpretado o clearance dada ao Legacy. Ele disse que teria entendido que fosse autorizado a voar a 37 mil pés até Manaus’.

De fato, o oficial concluiu pela falha do controle em terra, conforme demonstra o seguinte trecho do seu depoimento à ‘CPI do Apagão Aéreo’ na Câmara dos Deputados:

‘O que foi levantado com relação a essa clearence? Essa clearence realmente foi dada de forma incorreta. Ela foi dada incompleta, de acordo com as normas vigentes, com a [sic] IMA 9100-12. Ela deveria ser mais específica quanto até onde deveria seguir essa autorização, até onde esse nível 370 [altitude de 37 mil pés] deveria ser autorizado’.

O que o jornalista não disse

Pedicini omitiu, contudo, uma ressalva fundamental, que figura no depoimento do coronel à CPI:

‘O que quero ressaltar é que, ao piloto, num caso de espaço aéreo alfa, com RVSM e com a informação de que eles estão sob vigilância radar, é realmente… seria mais provável que houvesse, inicialmente, uma interferência do controle de tráfego aéreo antes dos pilotos. Contudo, o comandante da aeronave tem que ter a consciência situacional do que precisa ser feito’.

Atente-se, também, para esta constatação do relatório preliminar da CPI do Apagão Aéreo no Senado. Pedicini, estrategicamente, também se cala ante o que se segue.

’23. Concluímos, portanto, que houve culpa dos pilotos na manutenção indevida da aeronave na altitude de 37.000 pés. O serviço prestado pelo órgão ATC era o de vigilância radar, que não exime o piloto da responsabilidade pela navegação da aeronave. Os pilotos deixaram de questionar a autorização recebida, tendo sido negligentes em supor, como alegam os advogados dos mesmos, que receberam autorização para voar a 37.000 pés, contrariando o plano de vôo previsto e a carta de navegação, que prevê níveis de altitude pares para quem voa no rumo magnético de 180º a 359º (conforme descrito nas fls. 751 do inquérito), sem em momento algum questionar uma altitude incorreta e inadequada para a navegação naquela aerovia. [grifos nossos- dos integrantes da CPI]’

O trecho a seguir também é ilustrativo, embora, como de hábito, tenha sido desprezado por Pedicini:

‘Sr. Relator Senador Demostenes Torres (DEM-GO): Ou seja, ao mencionar apenas Eduardo Gomes, Manaus, ele pode ter dado a impressão, para o piloto norte-americano que o nível único era o 370.

Sr. Coronel Aviador Rufino Antonio da Silva Ferreira: A Clearance(F), ela tem que ser completa, se o piloto não tem certeza do limite da autorização ele tem que requerer essa autorização.

Sr. Relator Senador Demostenes Torres (DEM-GO): Perfeito.

Sr. Coronel Aviador Rufino Antonio da Silva Ferreira: A norma não foi cumprida na informação que deveria ser dada.

Sr. Relator Senador Demostenes Torres (DEM-GO): A norma não foi cumprida pelo controlador?

Sr. Coronel Aviador Rufino Antonio da Silva Ferreira: Pelo controlador, sim, senhor. E no caso compete ao piloto certificar desse limite’.

Perseguição ou espírito crítico?

Como se pode observar, os pilotos do Legacy não estavam, de acordo com as fontes de Pedicini, ‘cobertos de razão a 37 mil pés’. Tampouco se pode chancelar a sua afirmação de que ‘(sic) o CPI disse que aqueles que saem em defesa dos pilotos estão cobertos não com a bandeira, mas com razão’.

Nas lições de jornalismo de Richard Pedicini, deve-se citar a CPI, mas só quando convém (ainda que seja preciso distorcer). Talvez por isso ele tenha minimizado outra conclusão, a de que o transponder do Legacy estaria funcionando perfeitamente. Como se trata de uma informação que pode comprometer ‘os rapazes’, é preciso formular uma hipótese conspiratória baseada em uma suposta omissão dos dados corretos. Do contrário, ‘os rapazes’ estariam em maus lençóis.

Talvez por isso, também, Pedicini tenha evitado se manifestar sobre o comportamento inseguro dos dois pilotos em vôo, conforme indicam as gravações da cabine reproduzidas pela CPI.

Ensina-nos o prócer do bom jornalismo:

‘O tempo e o espaço não permitem responder a todas as acusações infundadas feitas contra os pilotos, nem explicar o que motiva as investigações de acidentes aéreos, nem apontar os erros consagrados da imprensa brasileira, ilustrados mais uma vez nesta perseguição’.

Não nos venha com essa, Mr. Pedicini. Todos sabemos que o ceticismo é uma virtude jornalística. Ceticismo, em sua raiz grega, remete-nos à suspensão do juízo, ao exame, à análise desapaixonada.

É tudo o que o senhor e o seu similar do New York Times não têm observado na abordagem do tema em questão. Alguém precisa cobrir essa fenda. Pouco importa se os senhores são de nacionalidade americana ou congolesa. Tanto faz. Não se levem a sério. Rotular-nos como xenófobos é uma manobra diversionista, tanto quanto oportunista.

Temos outras prioridades: buscar as respostas que devemos aos familiares, aos amigos e à memória das 154 pessoas que pereceram naquele acidente. E aprender com os erros para evitar a repetição da tragédia.

Nada disso tem a ver com perseguição, mas com a defesa da verdade, que tem sido sacrificada, como se verifica por tudo o que aqui se expôs.

Eis por que, oportunamente, devo retomar a conclusão do meu artigo anterior: caos não é informação, mas um apanhado, ou, antes, um amontoado. Serve, também, como cortina de fumaça. Cabe ao jornalismo ultrapassá-la, à distância dos interesses que a formaram.

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Jornalista