Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os exageros dos ‘cãezinhos’

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) observou que, ‘devido à profissão, todos os jornalistas são também alarmistas: este é o seu modo de se tornarem interessantes’. Encarado com as devidas ressalvas, o alarmismo que o autor faz menção perfaz uma realidade que, de fato, abarca um naco considerável dos nossos comunicadores. A sanha desvairada pelo aumento da tiragem é tradicionalmente um dos fatores responsáveis para os atabaques da imprensa ressoarem como trovões mesmo em situações onde são as mais banais trivialidades que estão sendo veiculadas, amplificando acontecimentos de relativa, baixa ou inexistente importância à condição de manchetes e principais pautas dos noticiários do horário nobre.

As baquetas do sensacionalismo estão entre as que, com tamanha força, costumam atacar os atabaques da mídia, regendo o ritmo da qualidade e da quantidade da veiculação de determinados fatos que, dependendo do seu sujeito, agente ou vítima, ganham ares de novidade e absurdo, mesmo se os acontecimentos retratados forem comuns, presentes no cotidiano político ou no dia-a-dia da maioria anônima do país.

Lamentáveis letras mortas

Se tais baquetas costumam levar a marca do sensacionalismo, não é este o único regente da produção e da conduta da grande mídia nacional. Quando se trata puramente de aumentar as tiragens, talvez o seja. Porém, quando são seus escusos interesses políticos, sociais e econômicos que são postos sob discussão, os atabaques passam a ressoar como autênticos clarins de guerra, e não só; zarabatanas são acionadas contra agentes públicos ou privados que eventualmente ameacem interesses particulares de acionistas ou de certos grupos econômicos, interesses estes cuja existência frequentemente atrita com a lei e com o interesse público. Como estratégias de guerra, usam de expedientes tais quais a criação de um artificial clima de batalha campal em nome da democracia, a utilização de um maniqueísmo nonsense e ideológico, a auto-definição como defensores servis, românticos e altruísticos dos direitos civis entrincheirados na heróica luta contra o inimigo atroz e a rotulação de seus egoísmos e idiossincrasias individuais como autênticos interesses de ordem pública e social. Agem de modo que, assim, recebam o aval dos seus leitores e da sociedade em sua campanha quixotesca contra os supostos algozes da imprensa livre e independente.

Assim é, como já observado diuturnamente neste Observatório, que a grande imprensa nutriu uma desproporcional aversão contra a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em dezembro do ano passado, bem como contra as diretrizes propostas pela terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) no que tange ao dito controle social dos meios de comunicação. A mídia, com isso, vem mostrando que tem a si própria como segmento acima de qualquer regulação legal e até constitucional, visto que no PNDH-3 o que se colocou em discussão foi tão somente a regulamentação de preceitos constitucionais referentes à comunicação social que hoje não passam das mais lamentáveis letras mortas, a exemplo do art. 221 da nossa Carta Magna, um moribundo do qual a mídia faz esforços hercúleos para lhe esconder os desfibriladores.

O embate dialético

A imprensa, que tem papel indelével na manutenção de uma democracia plena por, além de materializar o direito à informação, arcabouço da cidadania, ter entre seus tradicionais deveres a fiscalização, investigação, apuração e a cobrança do exercício da legalidade e da moralidade por parte dos que lidam com interesses coletivos, não pode capitanear a sua auto-exclusão dessa própria legalidade que com pretensos ares de civismo costuma defender tão ferrenhamente. Agindo desta forma, adota ela uma postura perniciosamente ambígua.

Não há espaço para a descabida hipótese de que haja setor da sociedade insuscetível ao cometimento de abusos a ponto de se situar à margem da jurisdição estatal e de resistir sobremaneira contra quaisquer espécies de iniciativa, discussão ou hipótese que trate da regulamentação de suas atividades, virando-lhe as costas sumariamente. O combate a condutas abusivas é forma de garantia da legalidade e da própria liberdade. A imprensa não pode, ao seu bel prazer, presentear-se com o privilégio de não se submeter a regulamentações que visam exatamente ao impedimento e à remediação no que diz respeito a eventuais abusos e desvios de conduta de sua parte.

É assim que funciona o Estado Democrático de Direito que, diferentemente dos que com egoística má-fé gostam de propagandear, não se subsume apenas à liberdade de expressão e de informação, direitos estes que, como quaisquer outros, também possuem limites.

É necessário que se reflita acerca do papel da mídia nos dias hoje, principalmente no que concerne ao atual momento da sociedade onde valores, concepções e comportamentos se mostram cada vez mais voláteis. Para isso, imperioso é que haja o confronto de idéias, de convicções e, a partir dessa pluralidade, seja possível concluir diretrizes cujo escopo é não mais que adequar o modus operandi da imprensa à lei e às atuais demandas sociais do país. Esse processo de lapidação, como afirmado, requer o embate dialético, embate este evitado de forma contumaz e injustificada pelos cidadãos tupiniquins.

‘Não prejudicar a digestão’

Em países como a Áustria, Alemanha e Suécia, a programação de TV é submetida aos devidos arreios da legalidade. Existem, por exemplo, faixas horárias seguidas com rigor e proibição de comerciais que se destinem a menores de 12 anos. Medidas como estas no Brasil seriam indisfarçada e instantaneamente taxadas pelos acólitos dos principais meios de comunicação como tentativas de ‘censura’ ou de ‘supressão da liberdade de informação’. É exatamente nesse ponto que se forma o paradoxo de se arvorarem na defesa da lei para, no entanto, poderem continuar a desrespeitá-la.

Uma matéria datada de 27 de janeiro encontrada no sítio da revista Veja se coloca como perfeito exemplo das observações acima realizadas, a começar pelo seu paradigmático título: ‘A obsessão totalitária: censurar a imprensa e impedir o fluxo de idéias no Brasil é a única bandeira genuinamente comunista que sobrou aos petistas’. A paranóia chega a tal ponto que o referido veículo, não satisfeito em alçar a Confecom e o PNDH-3 ao status de maledicentes instrumentos voltados à ‘criação de um tribunal para censurar, julgar e punir jornalistas e órgãos de comunicação que desobedeçam às normas governamentais’, já adianta ataques à Conferência Nacional de Cultura, que será realizada ainda no mês que vem, através da qual ‘os petistas vão, mais uma vez, tentar encontrar uma forma de ameaçar a liberdade de imprensa e obrigar revistas, jornais, sites e emissoras de rádio e TV a apenas veicular notícias, filmes e documentários domesticados, chancelados pelos sovietes (conselhos) petistas e reverentes à ideologia de esquerda’. O teor ideológico, político-partidário e maniqueísta da matéria é ofuscante. Pode-se escutar desde já e de muito longe o som dos atabaques.

Dando exato prosseguimento aos dizeres de Schopenhauer com os quais se iniciou este artigo, finaliza o filósofo prussiano afirmando que ‘mediante tal expediente, [os jornalistas] acabam por se igualar aos cãezinhos que, tão logo percebem algum movimento, põem-se a latir fortemente. Sendo assim, é preciso dar aos seus sinais de alerta apenas a atenção necessária para não prejudicar a própria digestão’.

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Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte