Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os exames após a graduação

Eis 16 de dezembro de 2010 – um dia realmente muito interessante, do ponto de vista midiático. Claro, temos as notícias de sempre, como trânsito e chuva nas proximidades do Natal, casos de corrupção, indicação de novos ministros, além de assuntos que vêm ocupando manchetes há dias, referentes ao WikiLeaks, à prisão de seu fundador e sua libertação no Reino Unido sob fiança. Claro, sem falar nas inúmeras matérias sobre economia, além da tensa situação entre as Coreias. Mas este observador incidental, talvez por estar completando trinta anos de sua cerimônia de graduação em Medicina, observou com um pouco mais de detalhes notícias referentes à profissão escolhida. E no mesmo dia, que assuntos!

No final da manhã, creio, após atender o meu último paciente do horário, dei um passar de olhos pela internet e lá estava, como destaque principal da Folha.com, o mais baixo índice de aprovação na segunda fase do exame voluntário do Cremesp desde sua instituição, em 2005 – cerca de 500 médicos recém-formados fizeram a primeira fase e uns 50 foram aprovados para a segunda. Essa fase é composta por projeção de vídeos, por exemplo, de situações clínicas corriqueiras – segundo a instituição, em geral cerca de 90% dos que são aprovados na primeira fase também o são na segunda. No presente ano, contudo, apenas 68% foram aprovados. Faltam dados a serem analisados, como escolas de origem, detalhes da formação educacional, experiência prática na faculdade, mas não deixa de ser assustador o fato de que houve quase 70% de reprovação em exame voluntário e que os temas mais abordados não eram rodapés de livro; ao contrário, temas frequentes da clínica médica que todo profissional, qualquer que seja sua especialidade, deve minimamente saber, como tuberculose, sífilis, emergências. O Conselho também estuda a possibilidade do exame ser nacional, unificado e obrigatório, como o da OAB.

Responsabilidade e compromissos

Mais para o final do dia, manchete do UOL, na realidade do site nele hospedado – ‘Última Instância: a Justiça Federal considerou inconstitucional o exame da OAB’. Uma associação de bacharéis em Direito do Ceará entrou na Justiça contra o exame, perdeu, mas um agravo ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região concedeu em caráter liminar o conceito de falta de previsão constitucional para a OAB realizar seu exame. A sentença do desembargador merece ser lida com detalhes por quem se interessa pelo tema, mas basicamente coloca que nenhum brasileiro formado em instituição de ensino superior reconhecida pelo MEC pode ser impedido de exercer a profissão; que o exame da Ordem usurpa funções da própria universidade, pois se apenas ela dá o poder de um bacharel em Ciências Jurídicas ou Direito se tornar advogado, todas as provas realizadas durante o curso perdem a validade. E ainda cita decisão provisória do próprio Supremo Tribunal Federal, que estaria prestes a decidir esse assunto. O site ainda informa que o Ministério Público Federal também está com ação correndo na Justiça com argumentação semelhante contra o exame da OAB. E o desembargador ainda arremata com o princípio da isonomia: o Direito seria a única profissão a só poder ser exercida depois de um exame após a graduação, ao contrário de todas as demais.

A OAB se manifestou dizendo que não quer controlar o mercado de trabalho, mas sim, a qualidade do mesmo, e que vai recorrer da presente sentença.

Já no dia 17, foi o Estadão e seu site a darem destaque aos dois assuntos. Acrescentaram apenas mais uma observação do Cremesp, que seria a de que esse ano o número de inscritos em seu exame foi mais baixo, além do fato de que os candidatos vieram de escolas ditas ‘menos tradicionais’.

Analisemos, em primeiro lugar, a questão da Medicina. Evidentemente que a responsabilidade é gigantesca do profissional, que deve possuir sólida formação técnico-científica, além de habilidades manuais, elaboração de diagnósticos a partir de algoritmos que se criam automaticamente em curtíssimo espaço de tempo no cérebro de cada um a despeito das regras gerais ensinadas nas faculdades (o dr. Gregory House e seu método não são assim tão originais quanto a se chegar a um diagnóstico; sua personalidade e demais componentes da série de TV que faz sucesso devem-se mais a esses fatores para um médico, acredito), conseguir agir de modo extremamente rápido e o mais preciso possível em situações de urgência grave e, claro, também exibir uma mais que excelente formação ética e humanística. E deverá se manter sempre atualizado, continuamente, quase todo dia, enquanto exercer a profissão.

Só 16% foram aprovados!

Nas escolas médicas, de maneira geral, especialmente nas ora denominadas pelo Cremesp como ‘tradicionais’, toda a festança e alegria da passagem pelo vestibular acabam já no primeiro dia de aula: não me refiro à horrenda prática do trote, mas sim, à bigorna que cai na cabeça dos alunos – desde as primeiras disciplinas ensinadas, como Anatomia, Histologia, Embriologia, Fisiologia e assim por diante, há uma quantidade gigantesca de informações, grossos livros a serem lidos e relidos (além de revistas e sites online), professores via de regra extremamente rigorosos, provas de todos os tipos (testes, descritivas, orais, práticas…) que acabam com a adrenalina de qualquer um. E as coisas assim vão até o último período do curso, o internato, quando se acrescenta a prática ambulatorial e hospitalar supervisionada, que além do rigor também acaba por fazer um downsizing no aluno, que se torna office-boy de luxo, buscando exames em laboratórios no outro extremo do hospital de madrugada, compilando longas histórias clínicas dos pacientes internados, para depois, ao relatar as mesmas para os professores, residentes e colegas nas visitas (a ronda da equipe de paciente em paciente), quase sempre saírem esculachados pelos docentes ou residentes, que acabam por achar alguns erros. Sem falar nos pacientes ‘profissionais’ dos hospitais-escola, que só conseguem ser atendidos nos mesmos e que, observando como as coisas funcionam, não raramente contam longas histórias falsas para os internos, para desmenti-los na hora da visita da equipe, para dar um toque gourmet a mais na humilhação.

E, finalmente graduado, lá vai o jovem médico passar por novo vestibular, certamente tão duro que o inicial, que é o exame de residência médica, ainda mais porque não há vagas de residência credenciadas pelo MEC para todos que se formam: apenas para 60%. E a residência, uma pós-graduação latu sensu não serve apenas para formar especialistas – há um bom tempo tornou-se obrigatória para cobrir falhas eventuais obtidas no curso médico.

Mesmo assim, só 16% foram aprovados no exame do Cremesp desse ano!

Ressarcimento por dano material e moral

Há vários anos tenta-se algo como o exame da OAB na área médica. Provavelmente a mais antiga, bem feita e longeva experiência seja o exame da AMRIGS, a associação médica do Rio Grande do Sul. Na década de 1980, o Cremesp e a Associação Paulista de Medicina (APM) tentaram fazer um exame – não conseguiram a obrigatoriedade, mas vários médicos participaram. Ocorreu uma curiosidade, ao menos: para dar o exemplo, os presidentes das duas entidades prestaram as provas. O presidente do Cremesp, competente neurocirurgião, que passa a vida dedicando-se muito mais à sua difícil especialidade, foi aprovado. O presidente da APM, já falecido, conhecido e competente professor universitário de especialidade clínica e clínica geral, foi reprovado.

A ideia do exame e a persistência do Cremesp são excelentes: há o claro e indisfarçável desejo de melhorar a qualidade do atendimento médico, pois o número de denúncias contra médicos ao órgão vem aumentando a cada ano, seja por imperícia, seja por modo ético de atuação. E a explicação desse aumento não é difícil: o número de faculdades de Medicina só se faz aumentar e a maioria das novas é puramente caça-níqueis, não possui hospital próprio, corpo docente muitas vezes desqualificado, falta de laboratórios e assim por diante.

No Estadão, o atual presidente da APM fez uma colocação curiosa: não é exatamente contra o exame ao final do curso, mas após seis longos e caros anos de formação (e caros em todos os sentidos imagináveis), o recém-formado poderá não vir a exercer a profissão?

Antes que atirem pedras no operoso colega da APM, devo lembrar um aspecto. Pelo Código de Defesa do Consumidor, o aluno de Medicina pode ser considerado como tal; caso sua faculdade seja fechada pelo MEC (se é que um dia isso vai acontecer) ou ele não possa exercer a profissão por outro motivo, há consenso entre juristas de que ele estaria apto a ser ressarcido por dano material e moral. Assim, a questão custo monetário até que poderia ser atenuada, desde que os magistrados aceitem as contas corretas e suas correções com os gastos reais, além de arbitrarem um valor de dano moral aceitável.

A reforma Flexner de 1923

Exames tipo OAB e Cremesp têm grande influência norte-americana: lá, o formando presta o board, por exemplo, equivalente ao nosso. Mas será que isso basta? Um único exame para avaliar seis anos de faculdade, suas duras provas e prática supervisionada, por mais bem elaborado que seja, pode realmente avaliar o aluno? Em parte, com toda certeza, pois mesmo no exame voluntário do Cremesp verificam-se sempre baixos níveis de aprovação, mesmo sendo feitos por vontade própria do candidato, que deve se considerar preparado.

Desse modo, a meu ver, embora não discorde em princípio do exame, creio que a solução é bem outra. O MEC deveria ter mecanismos muito mais amplos e poderosos para avaliar as escolas médicas – todas, sem exceção – continuamente, até com a colaboração dos CRMs e associações médicas e de especialidades. Deve ser ágil. Identificar problemas e dar prazos curtos para sua correção, sob pena de fechamento da instituição, multas, processos judiciais e outras coisas mais que podem ser criadas para punição dos responsáveis. E os alunos também devem ser avaliados, para saber até se as faculdades os estão avaliando corretamente também…

Na base de tudo, o velho problema: chega de abrir novas escolas médicas! A qualidade cai vertiginosamente e os únicos beneficiários parecem ser os donos dos cursos, que cobram caras mensalidades. E que exista a coragem de fechar faculdades de Medicina, como ocorreu na América no Norte em 1923 na chamada reforma Flexner, que acabou com a maioria dos cursos por lá existentes nessa época. Medida draconiana e com inspiração germânica, mas que levou a uma qualidade muito mais homogênea dos cursos médicos por lá.

O fantasmagórico ‘mercado’ não resolverá a situação

Mas voltemos um pouco aos advogados: há o exame da OAB, com taxas também muitíssimo elevadas de reprovação, mas a sentença da Justiça Federal, embora em caráter liminar, preenche todos os requisitos legais. Apenas o Poder Executivo federal poderia propor lei para ser apreciada no Congresso nesse sentido, e parece que todos os governos procuraram passar longe dessa questão. Desse modo, caso o STF confirme a inconstitucionalidade do exame da OAB, não haverá como o Cremesp, ou mesmo outras profissões, exigirem exames obrigatórios após a graduação. Mesmo assim, apesar da opinião do juiz cearense, acho extremamente difícil que o STF acolha essa tese e acabe com o exame da OAB.

Imagino se existisse uma espécie de ‘Wikimedicalleaks’ brasileiro: muita sujeira iria aparecer. Quem sabe alguém tem essa ideia?

Em tempo: conheço bem os conselheiros do CRM e diretores da APM que lutam por esse exame e sei que são mais do que bem-intencionados, honestos e competentes. Estão fazendo até mais do que devem, pois na letra fria da lei os Conselhos de Medicina só podem atuar com o médico já formado, não antes. A questão, então, é de política governamental, de saúde e educação, de justiça e cidadania.

Resumindo: a imprensa precisa parar de noticiar – e de quando em vez comentar em editoriais – os exames de OAB e CRM anuais, mas exercer seu papel social de pugnar cada vez mais por não mais se abrirem escolas médicas, por fechar as de má qualidade, por ressarcir alunos de cursos eventualmente desaprovados. Pedirem, enfim, a coragem que faltou a todos, da primeira lei que lidou com o assunto (e vale até hoje), um decreto-lei do Estado Novo de Getúlio Vargas de 1932, passando pelos governos militares (que, diga-se de passagem, incentivaram a abertura de novas escolas) até os mais atuais FHC e Lula. Não será o fantasmagórico ‘mercado’ que resolverá a situação – no caso da Medicina, o resultado pode ser a morte de muita gente.

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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp e ex-conselheiro e ex-diretor do Cremesp