Parece que a ninguém incomoda quando a violação de direitos fundamentais alcança o pobre. Mas quando alcança o presidente do Supremo Tribunal Federal e um senador, daí é caso de pôr o Estado de direito sob ameaça.
O suspeito pobre segue algemado, chutado, levando pescoções e sofrendo outros tipos de humilhação na verdadeira via-sacra que é o caminho percorrido entre a o lugar em que é algemado e aquele em que é depositado.
Não é necessário ler nenhum parágrafo de Karl Marx para saber que também nas prisões e nos cemitérios continua a luta de classes. Os ricos são presos e enterrados de um modo; os pobres de outro.
João Cabral de Melo Neto mostrou a divisão no diálogo de dois coveiros em Morte e Vida Severina. Para os ricos: ‘As avenidas do centro são melhores,/ mas são para os protegidos’. Para os pobres: ‘Na verdade, seria mais rápido/ e também mais barato/ que os sacudissem de qualquer ponte/ dentro do rio e da morte’.
Gorjeta gorda
No caso das prisões, para os delinqüentes ricos há sempre um jeito de burlar a lei. Já para o cerca de 150 mil pessoas que aguardam há anos julgamento nos cárceres, não há jeito de cumpri-la. Tiveram decretada prisão preventiva ou temporária, mas nunca mais saíram de lá.
Na edição de segunda-feira (1/9) da Folha de S.Paulo (pág. 2), o jornalista Ruy Castro, no artigo ‘Algo de podre’, fala das mudanças havidas em Bangu 8, presídio de segurança máxima, no Rio, depois que para lá se mudaram, entre outras figuras sociais de destaque, o ex-banqueiro Salvatore Cacciola e o ex-deputado e ex-delegado Álvaro Lins.
A comida sai de restaurantes vips da Barra da Tijuca e as visitas chegam em carros blindados. E anotou outra curiosidade: o requinte dos pratos não está restrito aos dias de visita, às segundas e sextas-feiras. Ao contrário, o serviço de inteligência de Bangu 8 suspeita que, não apenas os nomeados, mas ‘outros presos cinco estrelas também estejam pedindo haddock e salmão todos os dias àqueles restaurantes, excedendo os R$ 100 semanais que têm direito de gastar na prisão’.
‘Ora’, continua Ruy Castro, ‘R$ 100 era o que eles davam de gorjeta ao manobrista quando entravam nos restaurantes pela porta da frente.’
Infelizmente, não podemos dizer como disse Euclides da Cunha, em crônica publicada em O Estado de S.Paulo, em 13 de abril de 1892:
‘A situação é esta: de um lado, um grupo de indivíduos que intenta a subversão da ordem, e, de outro, um governo que se faz respeitar’.
Letra da lei
Ninguém menos do que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, foi flagrado consultando sua agenda eletrônica. Na foto, publicada em O Globo, aparecia nitidamente um compromisso com o ex-deputado cassado José Dirceu, ali designado ainda como ‘ministro José Dirceu’. Ao lado do nome, constava o local, ‘residência’, sem especificar na de qual dos dois. E na agenda oficial do ministro da Defesa não constava o encontro. Há dois países, duas agendas, outros ministros?
Já um jornal espanhol afirmou que a reportagem da revista Veja gerou uma ‘crise institucional’. Do Rio, o correspondente Juan Arias escreveu o seguinte, em El País, na segunda-feira (1/9):
‘Sin embargo, hace tiempo que se denunciaban casos de escuchas telefónicas ilegales a políticos, jueces y ministros. Se calcula que más de medio millón de brasileños tienen su teléfono controlado’.
Mas só gerou crise institucional quando foram grampeados um ministro do STF e um senador. Como no caso das algemas, elas só importunaram o presidente do STF quando o delegado Protógenes de Queiroz as pôs no pulso de um banqueiro.
A Constituição é clara: ‘Todos são iguais perante a lei’. É verdade, mas não perante a vida, perante o cotidiano, perante a polícia e perante todo o resto. E ‘o resto’, como diz o título de um romance de Erico Verissimo, ‘é silêncio’.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Novo Século); www.deonisio.com.br