Como interpretar o gesto de Paulo Coelho, declarando apoio ao presidente no último dia de campanha? O presidente Lula precisava daquele apoio? Como nasce uma iniciativa como essa?
Que não seja demais dizer que, politicamente, por norma, os intelectuais brasileiros estão sempre mais perdidos do que cachorro em dia de mudança. Longe do povo, a quem conhecem por estatísticas e com quem se solidarizam à beira de copos de boas bebidas e pratos aos quais o povo não tem acesso, compõem um estamento que, politicamente e grosso modo, pode ser dividido em duas correntes: contra e a favor.
A síntese ética pode ser resumida no famoso provérbio: ‘Hay gobierno? Soy contra!’ Quando um grupo, por menor que seja, se articula para inverter o lema – Há governo? Sou a favor! – surgem as inevitáveis desconfianças de que o apoio não é espontâneo, não é de graça. Mas, também por norma, jornalista gosta de fazer as matérias sem perguntar muito, ou perguntar as mesmas coisas sempre aos mesmos, aqueles cujos telefones estão em suas agendas. E, principalmente no Brasil, estas coisas são mais complexas. Não é a economia, estúpido. É a pesquisa. Foi assim que descobriram que era a economia o grande tema.
Capitão do time
No debate da TV Record (segunda, 23/10), houve uma solitária exceção, que lembrou a pergunta que o jornalista Boris Casoy fez a Fernando Henrique Cardoso na campanha à prefeitura de São Paulo, quando perdeu para Jânio Quadros: ‘O senhor acredita em Deus?’. A propósito, há mais de 20 anos, naquela campanha, Jânio deu precioso indício do conhecimento que os intelectuais têm do Brasil: ‘Quando Fernando Henrique for conhecido em Sapopemba, eu terei ganhado a eleição’.
Pois agora uma jornalista desconcertou de novo os candidatos e o público ao perguntar a Lula qual a qualidade que ele mais admirava em Alckmin, e a Alckmin qual a qualidade que ele mais admirava em Lula. Nenhum dos dois respondeu, nenhum dos dois teve a humildade de responder, melhor dizendo, nenhum deles quis reconhecer os inegáveis méritos do outro.
Ambos espelharam uma estranha anomalia que vige entre nós: nossos adversários são homens sem qualidade alguma. Só têm defeitos. Ora, nenhum dos dois chegou ali sem méritos. É claro que ambos não pensam assim, certamente reconhecem os méritos um do outro, mas devem ter sido orientados pelos marqueteiros a não externarem isso. (Marqueteiros, um capítulo à parte; com a hegemonia dos marqueteiros, fica difícil preservar a autenticidade do candidato; o presidente Lula, por exemplo, é sempre melhor sem eles.)
O Brasil ferve em escândalos escabrosos desde que o ex-deputado Roberto Jefferson fez as denúncias que levaram à cassação de José Dirceu, o capitão do time do presidente Lula. O resultado é que pode ter sido derrubado ali um modo de governar o Brasil, mas não de gerenciar o Partido dos Trabalhadores, cujos maiorais continuaram a operar de modo ilícito, transgredindo comezinhas normas de direito, de vida republicana.
Último dia
E o que fizeram os intelectuais? Bom, a mídia cunhou ou deu circulação à síntese: o silêncio dos intelectuais. Silêncio uma ova! Silenciou apenas aquele pequeno grupo que é sempre citado, que opina sobre tudo, incrustando ao pé de página as suas próprias qualificações. Se o autor não sabe pensar, mas fez um curso de filosofia, é filósofo; se nada entende da sociedade, mas fez curso de sociologia, é sociólogo. E assim por diante, em muitos outros ofícios que identificam os membros do estamento como intelectuais.
O estamento intelectual tem notórias restrições a Paulo Coelho, bastante diluídas depois da acolhida que sua obra teve na França e depois que foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Os coordenadores da campanha do presidente Lula, se quisessem buscar apoio de escritores, seriam mais coerentes se acolhessem ali autores cujas obras espelhem a pedra de toque do segundo governo Lula: a preocupação com a ética, com a realidade social. Mas talvez esses não tomem vinho Romanée-Conti e andem em outras companhias…
Em suma, houve um dado estranho no coelhaço. E a mídia não informou ao distinto público as razões e os desdobramentos do ato insólito. Que ele tenha o direito de proclamar sua preferência, ninguém nega. O que se quer entender são os motivos de tê-lo feito apenas no último dia da campanha, no programa de um candidato que nas pesquisas de intenção de voto estava 20% à frente do adversário. Soou oportunista a inserção. Mas para quem?
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br