Sempre que há uma grande tragédia no Brasil, retomam-se os debates sobre o sensacionalismo na imprensa. Impossível não evocar a cobertura do acidente com um avião da TAM, em 1996, que caiu num bairro de São Paulo deixando 99 mortos. Na verdade, creio que este foi o primeiro grande caso da era sensacionalista nas redes de televisão, que exploravam exaustivamente as imagens dos corpos carbonizados, da fuselagem do avião, captando inclusive objetos pessoais das vítimas, chamuscados. O mesmo aconteceu com jornais e revistas, com suas capas estampando a tragédia em cores vivas, o que gerou na época um debate extenso sobre até que ponto a liberdade de expressão escorrega para a frieza de explorar a dor alheia.
Naquele ano, eu era acadêmica de Jornalismo e lembro alguns colegas e professores questionando em sala de aula se todos os limites do bom senso haviam mesmo sido ultrapassados naquela cobertura jornalística. Eu apenas ficava imaginando como se sentiam os familiares e amigos daquelas pessoas mortas de um jeito tão estúpido – e qual morte não é estúpida? – quando ligavam o televisor ou deparavam com uma capa de jornal na banca da esquina.
O tiroteio na escola do Rio de Janeiro e o recente suicídio da atriz Cibele Dorsa aparentemente não têm nada em comum. Contudo, a cobertura da imprensa para os dois fatos faz com que sejam retomados os debates sobre os limites entre o jornalismo e o sensacionalismo, entre o dever de informar e ânsia por simplesmente chamar – e prender – a atenção de telespectadores e de leitores.
A favor da censura da carta
O atirador que matou 13 crianças e feriu outras tantas numa escola carioca ganhou fama instantânea, assim como todos que morreram naquela tragédia. Na televisão, sucederam-se depoimentos sobre as vítimas, adolescentes que jamais irão realizar seus sonhos porque foram brutalmente assassinados numa sala de aula. Antes repórteres – e público – se contentassem apenas com os depoimentos de quem os mantém na memória… Infelizmente, dia e noite, graças às câmeras de segurança e ao celular de alguém metido a cinegrafista, o banho de sangue tornou-se interminável diante de nossos olhos: o desespero no corredor da escola, o corpo inerte do psicopata numa escada, uma menina perdendo a vida ao vivo na calçada, um pai chorando ao lado da filha gravemente ferida – tudo isso reprisado constantemente, de um canal ao outro, sem cessar, invadindo o domingo de descanso.
No entanto, debater esse tipo de sensacionalismo é insistir no mesmo tema de 15 anos atrás, quando o Fokker 100 da TAM caiu. Por isso, é importante lembrar que o noticiário sobre o atirador do Rio de Janeiro acabou encobrindo, com uma grande tragédia, outra tragédia de proporções menores: o suicídio da atriz Cibele Dorsa. Toda a polêmica envolvendo a censura de sua carta-suicida – que acabou sendo publicada pela revista Caras e por inúmeros outros veículos da Editora Abril – mereceria uma análise mais detalhada e um debate com maior visibilidade sobre os limites da liberdade de imprensa.
Não tenho vergonha ou pudores em afirmar que eu era totalmente a favor da censura da carta. Cibele Dorsa não era uma figura pública importante para o povo brasileiro – como fora antes outro suicida ilustre, o presidente Getúlio Vargas –, tampouco uma celebridade que realmente tivesse contribuído de alguma forma para a cultura de nosso país. Resumindo, creio que o conteúdo da carta realmente não configurava informação de interesse público para justificar o uso da emenda que prega a liberdade de expressão e de imprensa. Se a atriz havia enviado a carta à redação da revista Caras, era para ter um último momento de reconhecimento e de exposição num veículo de comunicação que lhe deu espaço menos por seu talento e mais por ser ex-mulher de uma figura importante na alta sociedade brasileira: Doda Miranda, marido da bilionária Athina Onassis.
Uma fofocacom toques de crueldade
Enfim, o que os advogados do ex-marido de Cibele Dorsa tentaram fazer era simplesmente resguardar a memória da mãe de duas crianças – uma delas filha de Doda –, evitando expor a degradação mental e emocional dessa senhora diante de outra pequena tragédia: o suicídio de seu noivo Gilberto Scarpa, viciado em drogas, ocorrido dois meses antes, da mesma forma e no mesmo lugar. Acredito que os dois filhos de Cibele, com idades entre 9 e 12 anos, seriam preservados por seus familiares dos detalhes da morte de sua mãe porque, como diz o ditado, há vezes em que ter compaixão é muito mais importante do que ser sincero. Os jornalistas do grupo Abril, talvez, com a carta em mãos, poderiam ter a galhardia de pensar um pouco se a família dessas crianças não teria mais condições de avaliar se era justo ou não que tal texto se tornasse público, pelo bem desses meninos. Toda a polêmica em torno da censura à revista Caras só causou dor e preocupação adicionais a um pai focado em não expor sua família a mais sofrimento, um direito que todo cidadão brasileiro, famoso ou não, milionário ou não, deveria ter diante de suas pequenas tragédias cotidianas.
Se para as grandes tragédias é quase impossível ter um luto silencioso e privado, pelo interesse do público em relação aos fatos que modificam nossa sociedade profundamente, para as pequenas tragédias deveria haver a consideração pela dor alheia. Expor publicamente a carta de um suicida não se justifica, a não ser que ele tenha sido o piloto de um dos aviões que se chocou contra o World Trade Center. Há um limite fácil de identificar sobre o que interessa à sociedade e o que é apenas exploração de mais uma fofoca da high society com toques de crueldade.
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Jornalista e tradutora, São Marcos, RS