Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os limites do ombudsman

A criação da figura do ombudsman, ou ouvidor, remonta a uma época em que a Folha de S. Paulo tentava compensar, investindo na imagem de jornal moderninho, a perda dos profissionais talentosos que lhe haviam proporcionado qualidade e credibilidade.


Já houvera uma experiência pioneira e muito mais bem-sucedida nessa direção, por conta da condição de grande jornalista do seu artífice e também por ele estar lidando com um diretor-proprietário que conhecia suas limitações e deixava quem era do ramo convencê-lo a tomar as decisões corretas.


Estou me referindo, claro, à página dominical Jornal dos Jornais, a Alberto Dines e a Octavio Frias, pai.


Quando Ernesto Geisel começava a desmontar a máquina de terrorismo de estado que a ditadura criara para combater a luta armada, o Jornal dos Jornais foi muito mais do que um espaço para se discutir jornalismo.


Seu verdadeiro tema era a abertura democrática: Dines a impulsionava de todas as maneiras, elogiando os jornalistas sintonizados com a causa da liberdade, criticando os serviçais do arbítrio e passando sutilmente a seus leitores informações dos bastidores do poder, num tempo em que, até por motivos de segurança pessoal, era essencial conhecer-se bem a evolução da luta interna na caserna (a linha dura resistia aos ventos liberalizantes e a todo momento tentava, com suas investidas truculentas, fechar os espaços que iam se abrindo).


Eis como Dines relatou, em entrevista, o nascimento do Jornal dos Jornais: ‘Quando eu acertei com o Frias, salário e essas coisas [para trabalhar na Folha], eu combinei o seguinte ‘eu quero fazer uma coisa no jornal e você não vai me pagar um tostão a mais. Você vai me dar duas colunas de alto a baixo na segunda-feira, no segundo caderno, onde eu quero fazer uma coluna para discutir a imprensa.’ Não se falava em mídia naquela época. Ele me advertiu ‘não se meta nisso, você só vai ganhar inimizades, não faça isso, eu quero te poupar’. E eu falei ‘me deixa fazer, se houver problema eu paro.’ E ele ‘olha, eu te avisei!’. E, qual não foi a minha surpresa quando eu mandei a primeira coluna, o [diretor de redação] Cláudio Abramo convenceu o Frias falando ‘não isso não pode ficar no segundo caderno e na segunda-feira, esse é o pior dia, isso vai ficar no primeiro caderno, na página seis’. E lançou o Jornal dos Jornais. O título eu já tinha na minha cabeça, era algo até mais amplo do que é o ombudsman, que é na mesma página 6 até hoje.’


Carta branca da direção


A carta branca que Dines acabou recebendo de Frias tem também muito a ver com um conselho dado por Golbery do Couto e Silva, eminência parda do governo que se iniciava, ao dono da Folha: como Geisel, qual um déspota esclarecido, pretendia flexibilizar aos poucos a censura, até extingui-la, Golbery sugeriu a Frias que a Folha assumisse uma postura mais crítica, não deixando O Estado de S. Paulo ocupar sozinho o espaço de oposição jornalística ao regime.


Assim, foi por orientação do próprio feiticeiro da ditadura que um grupo de imprensa colaboracionista se travestiu de independente. Mas, claro, isto só se tornou conhecido muito tempo depois.


No lançamento do Jornal dos Jornais, em julho de 1975, Dines assim definiu sua proposta: ‘Cabe à imprensa provar em sua própria carne que abrir-se à critica não é prova de vulnerabilidade, mas de amadurecimento. O que prejudica é o silêncio.’


Esse respiradouro foi fechado em setembro de 1977, quando a linha dura militar utilizou uma afirmação descuidada do cronista Lourenço Diaféria (sobre a estátua de Caxias nos Campos Elísios servir para mendigos urinarem) como pretexto para intervir na Folha.


Era o momento decisivo do braço-de-ferro entre os milicos que apoiavam a distensão de Geisel e os que queriam impedi-la a todo custo. Um mês depois, Geisel daria xeque-mate nos opositores da sua abertura, ao demitir o ministro do Exército Sylvio Frota, em torno de quem se agrupava a ala radical do regime.


Eis um balanço que Dines fez do Jornal dos Jornais: ‘Cometi erros, eventualmente até injustiças, mas eu estava ali cobrando da imprensa o que ela estava deixando de cobrir em um período de autocensura. Fiz cobranças, como quando da morte da Zuzu Angel, que ninguém deu, eu falei ‘escuta, morreu uma mulher famosa e ninguém está noticiando! Por quê? O que é isso?’ E foi assim em todas as edições. Antes do Wladimir Herzog morrer, eu já estava denunciando que ele estava sendo perseguido por um jornaleco de São Paulo, ligado à Polícia. Isso chegou a repercutir, teve uma grande importância. Em 1977, o jornal foi obrigado a retroceder porque o governo militar deu um aperto na Folha. O Frias, provavelmente, aceitou a sugestão das autoridades e acabou com essa seção.’


A repetição da História como farsa


Sobreviveu, entretanto, a lenda de uma das grandes trincheiras da resistência jornalística ao despotismo.


Então, por conveniências mercadológicas e também para tentar esvaziar outro dos símbolos do apogeu jornalístico da Folha de S. Paulo (com os quais ele sempre conviveu muito mal), Otávio Frias filho incumbiu em 1989 Caio Túlio Costa de criar a seção do ombudsman, versão bem comportada do Jornal dos Jornais.


Mas tende a ser sempre ruim a convivência entre uma redação dirigida de forma arrogante e o profissional a quem cabe evitar excessos e atender as justas reclamações dos leitores.


Então, se o próprio Caio Túlio ainda ousava divergir, vez por outra, do comando do jornal, os sucessores foram caindo na real: sua função se tornava, cada vez mais, decorativa.


O nono ombudsman, Mario Magalhães (2007/2008), foi o único a deixar a função por não compactuar com sua descaracterização e esvaziamento. Como de hábito, publicava na página do ombudsman os comentários, sugestões e críticas que fazia aos profissionais da redação, mas algum não foi bem digerido pela direção, que condicionou a renovação do seu mandato ao fim da transparência: deveria restringir tais recados aos editores, não os tornando públicos. Preferiu sair.


O décimo, Carlos Eduardo Lins da Silva, faz o que pode, mas pode muito pouco. É óbvio que, após o episódio Magalhães, devem ter-lhe imposto limites ainda mais exíguos.


Vai daí que, sobre as 105 mensagens recebidas pela Folha a respeito do editorial em que qualificou de ‘ditabranda’ o regime totalitário de 1964/85 e da nota da redação acusando Fábio Konder Comparato e Maria Vitória Benevides de cínicos e mentirosos, o ombudsman só pôde escrever o seguinte, na sua coluna dominical de 22/02: ‘Um editorial com referência ao regime militar brasileiro provocou cartas publicadas no ‘Painel do Leitor’. Resposta da Redação a duas delas na sexta foge do padrão de cordialidade que julgo essencial o jornal manter com seus leitores’ (ver aqui).


É pouco, quase nada, face à gravidade do atentado cometido contra a verdade histórica e da agressão covarde que o jornal praticou contra as vítimas do arbítrio e seus entes queridos, ao minimizar a dor que sofreram; e também face ao insulto grosseiro que lançou contra dois de nossos mais destacados defensores dos direitos humanos.


Impunha-se, no primeiro caso, um pedido de desculpas no mesmo espaço em que foi feita a afirmação infame: o editorial.


Quanto a Comparato e Benevides, o que faltou não foi cordialidade, mas sim base para a acusação contra eles assacada: nenhum brasileiro pode ser taxado de cínico e mentiroso por defender os direitos humanos em seu próprio país e não se manifestar a respeito do que acontece em outros países, a menos que participe ou tenha participado de entidades cuja missão seja exercer a vigilância em âmbito internacional.


Então, ao misturar alhos com bugalhos, a Folha não foi apenas descortês, mas cometeu os crimes de difamação e calúnia. É disto que teria de se retratar – além de, provavelmente, responder por sua leviandade nos tribunais.

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Jornalista, escritor e ex-preso político