Vivemos, nos dias que correm, o imediatismo e o acidental. A informação rápida conduz-nos a incessantemente deglutir os fatos, como postos em manchetes que, por isso, usam e abusam do sensacionalismo superficial.
Nesse contexto insere-se a recente exposição de grande parte da imprensa brasileira sobre a abordagem que o Papa Bento 16 empreendeu sobre casais em segunda união.
É pinçada uma palavra – e, para mim, não é definitivo se mal, ou bem, traduzida –, a palavra ‘praga’, e nela, e por ela, exclusivamente, concluiu-se pela brutal condenação, feita por Bento 16, a todos quantos vivem essa situação.
As orientações do papa
Ora, a exortação apostólica Sacramentum Caritatis, que é profunda reflexão sobre a Eucaristia, é texto produzido em 160 páginas.
Parte da mídia brasileira selecionou uma palavra, em 160 páginas, para extrair, por óbvio, absurda conclusão. Todavia, Bento 16, em linhas imediatas à palavra dita, estabelece:
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o dever dos padres de ‘ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados’;**
a não recepção do sacramento da Eucaristia aos re-casados não é punição, em si, a pessoas nesse estado de vida, mas dá-se porque esse estado de vida, ‘contradiz objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, que é significada e realizada na Eucaristia’;**
os divorciados re-casados não podem ser excluídos da Igreja.Estilo de vida cristão
Façamos, então, a leitura do texto, completo, onde está a palavra ‘praga’:
‘Trata-se de um problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados. (92) O sínodo dos bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (MC 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos.’ (Sacramentum Caritatis nº 29)
Amor pela verdade
Mais, e sempre na compreensão do texto, e jamais na visão caolha da palavra pinçada, isolada e descontextualizada, prosseguiu Bento 16 e orientou os tribunais eclesiásticos a assumir ‘o seu caráter pastoral e a sua atividade correta e pressurosa’, guiada pelo ‘amor pela verdade’, que ‘nunca é abstrata, mas integra-se no itinerário humano e cristão de cada fiel’. Conheçamos, mais uma vez, o texto, em parágrafo seguinte àquele em que foi ‘achada’ a palavra ‘praga’:
‘Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimônio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canônico (93) a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua atividade correta e pressurosa; (94) é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que é uma obrigação grave tornar a atuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis. (95) No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstracta, mas ‘integra-se no itinerário humano e cristão de cada fiel’.’ (Sacramentum Caritatis nº 29)
Uma posição consistente
Portanto, Bento 16 estimula os tribunais eclesiásticos a despirem-se do rigorismo normativista-abstrato, para, pastoralmente, abrirem-se ao exame de cada caso, presente ‘o itinerário humano e cristão de cada fiel ‘e, adotada essa postura, proclamar a invalidade do primeiro matrimônio.
O papa Bento 16, atento aos sinais dos tempos, convida os re-casados a expor e a dialogar, com os tribunais eclesiásticos, sobre a invalidade do primeiro vínculo, e a possibilidade de sacramentar a união verdadeira.
Antes de nos precipitarmos, impelidos pelo manchetismo sensacionalista, a equivocadas conclusões, busquemos conhecer e analisar fatos e textos para, com fundamentação consciente, então, sim, assumir posição consistente.
Fora daí, somos massa de manobra ou, como se dizia no meu tempo de estudante, ‘inocentes úteis’.
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Subprocurador-geral da República, Brasília, DF