Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os pesadelos mato-grossenses

Um incêndio de grandes proporções destruiu entre quarta e quinta-feira (11 e 12/8) parte do município de Marcelândia, situado pouco mais de 700 km ao norte de Cuiabá (MT). O município, criado na década de 1980 e com uma população residente de aproximadamente 15 mil habitantes (ver sítio da Prefeitura de Marcelândia), abriga algumas dezenas de empresas que exploram o extrativismo, incluindo serrarias, madeireiras e laminadoras. As notícias dão conta de que o bairro mais afetado pelo incêndio concentrava algumas dessas empresas.

Mesmo em momentos graves, como esse, a imprensa local dificilmente tem força suficiente para investigar e reportar os fatos com a devida precisão. Algo semelhante se passa na grande imprensa: o teor das matérias parece estar mais preocupado em manter a sintonia com os ditames comerciais da empresa, de modo a não contrariar antigos patrocinadores ou afugentar os novos. Resta, portanto, ‘brincar’ de jornalismo.

No caso de Marcelândia, o desserviço da imprensa começa com as informações divulgadas para ‘explicar’ a origem e propagação do incêndio: a baixa umidade relativa do ar. A contribuição (involuntária) das empresas madeireiras se restringiria apenas ao acúmulo de refugo pelo chão. Fora isso, o público deve imaginar que todas as serrarias e madeireiras da cidade operavam dentro da legalidade. E mais: todas elas são empresas exemplares, certificadas pelos rigorosíssimos órgãos de fiscalização da prefeitura e do estado; todas participam de projetos sociais e ambientais; todas geram empregos; todas pagam impostos; todas contribuem, enfim, para o progresso da cidade e região. (A serraria ou madeireira que porventura escape dessa tipologia pode ser facilmente descrita como uma empresa cujo proprietário tem algum desvio de caráter.)

A cultura do faz-de-conta

Frente a afirmações desse tipo, mais ideológicas do que científicas, eu diria apenas o seguinte: virtualmente, todas as empresas instaladas no município – e o aparato operacional que gira em torno delas – são imprescindíveis para se entender o estado aparentemente degradante que as coisas atingiram em Marcelândia. Todavia, a julgar pelo que a grande imprensa brasileira está reportando, o caso deve ser encerrado dentro dos termos habituais: uma fatalidade sazonal provocada pela estiagem (ver matérias ‘Incêndio destrói casas e madeireiras em Marcelândia – MT‘, de O Estado de S. Paulo; ‘Queimada destrói 16 madeireiras e pelos menos 80 casas em cidade do Mato Grosso‘, de O Globo; e ‘Incêndio atinge Marcelândia (MT) e deixa cerca de cem desabrigados‘, da Folha de S.Paulo, todas publicadas em 12/8).

Esse é o mesmo tipo de raciocínio raquítico e preguiçoso que é retirado da gaveta sempre que é necessário ‘explicar’ como as chuvas provocam desabamentos e mortes justamente durante a estação mais chuvosa do ano…

Das duas, uma: ou a imprensa investiga e reporta os fatos – o que, nos tempos atuais, vai necessariamente provocar conflitos com alguns de seus patrocinadores –, ou a imprensa vai continuar ludibriando o público. Temo dizer que a imprensa brasileira já fez sua opção e nela, ao que parece, a opinião pública não desempenha o papel principal… (O caso mais paradigmático de como ‘informar’ o público sem contrariar patrocinadores talvez seja aquele que envolve a relação da imprensa com a indústria automobilística, um dos segmentos da economia que lideram a lista de anunciantes na mídia brasileira. É hilário ver, por exemplo, o contorcionismo que a imprensa faz para tratar os problemas de trânsito das cidades brasileiras sem, no entanto, apontar para a necessidade de medidas concretas que efetivamente inibam a compra e a circulação de automóveis.)

No caso de Marcelândia, mais especificamente, minha suspeita é de que o incêndio – responsável pela destruição de dezenas de casas, além das instalações de algumas empresas (montanhas de refugo incluídas) – era não só previsível, mas também evitável. A grande dificuldade é que para evitar incêndios – ou qualquer outro ‘acidente’ dessas proporções –, nós, brasileiros, teremos de empreender um esforço que parece estar além de nossas possibilidades atuais: deixar de lado a cultura do faz-de-conta.

O tamanho do problema

É preciso, por exemplo, remover a cortina de fumaça – com perdão do trocadilho – que encobre a situação calamitosa de Mato Grosso. Mais do que Rondônia ou Pará, dois estados que também ocupam as primeiras posições em rankings negativos, a situação em Mato Grosso é hoje um verdadeiro caso de polícia.

É o que constatamos, por exemplo, quando examinamos os índices de desflorestamento, focos de incêndios e grilagem de terras públicas: nos últimos 12 anos, o Mato Grosso invariavelmente ocupou a primeira ou uma das primeiras posições em todas essas listas (ver, por exemplo, as matérias: ‘Desmatamento irreversível‘, da Ciência Hoje On-line; ‘Número de focos de incêndio dobra no Brasil em 2010, diz EUA‘, de O Dia; e ‘Mato Grosso lidera `ranking´ da grilagem de terras; agronegócio é o culpado‘, do sítio eletrônico Amazônia). Nesse sentido, portanto, não seria exagero afirmar que a anarquia econômica que promove o desflorestamento, os incêndios e a grilagem de terras encontrou no estado um cenário propício para se estabelecer e prosperar.

Mato Grosso é o terceiro maior estado brasileiro, com quase 907 mil quilômetros quadrados de área territorial, atrás apenas do Amazonas e do Pará (1,578 milhão e 1,253 milhão de quilômetros quadrados, respectivamente). A despeito disso – ou talvez por causa disso –, o estado ainda não possui um sistema de unidades de conservação que abrigue e proteja de modo, digamos, satisfatório, toda a riqueza paisagística e biológica encontrada dentro de suas fronteiras.

Para sustentar a afirmação anterior, cabe lembrar que até alguns anos atrás todos os parques e reservas federais e estaduais existentes em Mato Grosso protegiam uma área equivalente a pouco mais de 1% do território estadual. Com esse percentual, o estado ocupava, em dezembro de 1997, apenas a décima quinta posição no ranking verde do país (26 estados mais o Distrito Federal). A média nacional era então de 2,5% (ver Costa, F. A. P. L. 1998. ‘Um inventário `verde´ para o país’. Ciência Hoje 143: 68-71). Sem as unidades federais, a situação do estado seria ainda pior: o percentual de proteção cairia de 1,08% para 0,58%.

O que há por trás dos números?

De 1998 para cá, o número de parques e reservas federais e estaduais estabelecidos em Mato Grosso praticamente dobrou, saltando de 14 unidades (cinco federais, nove estaduais) para 27 (sete federais, 20 estaduais). Com isso, a área total protegida triplicou, passando de menos de 9,4 mil quilômetros quadrados para cerca de 30 mil quilômetros quadrados. O percentual de proteção passou de 1,08% para quase 3,4%. Convenhamos: embora um valor como 3,4% seja ainda muito baixo, principalmente quando levamos em conta a riqueza e a complexidade paisagística e biológica do estado, temos de admitir que nos últimos anos o percentual de proteção melhorou de modo expressivo.

Ocorre que, em um país ainda tão atrasado em termos de proteção ambiental como o Brasil, ‘melhorar’ nem sempre significa dizer que os problemas foram de fato equacionados. Muito menos que estejam sendo tratados como deveriam.

Esse tipo de ressalva vale para todas as unidades da federação, mas é especialmente importante no caso do Mato Grosso, um estado mais habituado a ocupar as primeiras posições apenas quando se trata de algum ranking negativo. O que vemos hoje, em termos de desempenho acanhado do estado em rankings positivos e de destaque em rankings negativos, resulta de uma história relativamente recente que combina três ingredientes perigosos: omissões políticas, erros técnicos e irregularidades administrativas.

Veja o caso do Parque Estadual Igarapés do Juruena, no noroeste do estado. Criado em 2002, nos termos da legislação vigente, esse parque jamais foi implantado. Parte de suas terras foi grilada e parte de seus recursos tem sido pilhada por carvoeiros e garimpeiros (ver, por exemplo, a matéria ‘Parque estadual transformado em garimpo‘, do Diário de Cuiabá, publicada em 12/12/2006).

O caso do Cristalino

Casos de pilhagem ou mesmo grilagem de terras dentro de unidades de conservação legalmente estabelecidas são relativamente comuns em virtualmente todos os estados. O roteiro é mais ou menos o mesmo: uma área pública, ao invés de ajudar a proteger uma amostra de habitats naturais, garantindo bem-estar e serviços ecológicos imediatos e futuros para usufruto coletivo, termina sendo saqueada ou mesmo apropriada por uma meia dúzia de espertalhões. Se o lugar fica longe ou é de ‘difícil acesso’, os governantes logo viram as costas e engavetam o assunto. Uma ou duas décadas depois, e a região está inteiramente nas mãos de um ou outro ‘coronel’. (‘Difícil acesso’ é uma expressão de uso corrente, mas cujo significado real nem sempre é de fácil apreensão. Para uma equipe de bombeiros destreinados, por exemplo, um gato em uma árvore cinco metros acima do solo está em local de difícil acesso. De modo semelhante, para uma equipe de mergulhadores trapalhões, uma bicicleta mergulhada a cinco metros de profundidade nas águas de um lago está igualmente em local de difícil acesso. E assim por diante. No fim das contas, a falta de treinamento e tradição profissional qualificada – algo tão comum entre nós –, pode fazer com que qualquer coisa se converta em uma dificuldade intransponível.)

Desse modo, criar unidades de conservação sem implantá-las virou quase uma rotina em vários estados brasileiros. Ao longo dos anos, a política do faz-de-conta ajudou a alimentar entre nós a ideia de que é normal ter unidades ‘fantasmas’ – parques ou reservas criados por lei, mantidos em listas oficiais de áreas protegidas, mas cujo uso ou destinação final nada tem a ver com os objetivos iniciais de sua criação. O Parque Igarapés do Juruena seria apenas mais um exemplo disso.

Outro exemplo que serve para ilustrar a falta de visão de governantes, políticos e empresários mato-grossenses é o caso da criação do Parque Estadual do Cristalino.

Em 2000, o governo de Mato Grosso criou o Parque Estadual do Cristalino (Cristalino I), no extremo norte do estado (o nome do parque é uma alusão ao rio Cristalino, um afluente do Teles Pires, um dos rios que formam a ‘ponta’ triangular que caracteriza a fronteira norte do Mato Grosso). No ano seguinte, foi criada uma segunda área (Cristalino II), de tal modo que o traçado original foi ampliado. Com isso, o parque ‘cresceu’, passando de pouco menos de 67 mil hectares para quase 185 mil. Pelo novo traçado, os domínios territoriais do parque abrangeriam terras dos municípios de Alta Floresta e Novo Mundo.

Apoio financeiro do governo federal

Infelizmente, porém, o que parecia ser um início auspicioso logo se transformou em pesadelo. Poucos anos depois, o executivo estadual encaminhou projeto de lei à Assembleia Legislativa propondo uma redefinição dos limites do parque. De acordo com essa proposta, ficariam de fora do novo traçado todas as áreas ocupadas por moradores que usufruíam a posse da terra antes da criação do Cristalino I, em junho de 2000. Em compensação, seriam incluídas algumas áreas consideradas importantes em termos de conservação.

A proposta do executivo enfrentou a oposição de alguns deputados estaduais, que queriam simplesmente reduzir o Cristalino. De acordo com esses deputados, mesmo as áreas que foram ocupadas após a criação do parque deveriam ser excluídas do novo traçado. Propostas oportunistas e demagógicas como essa têm dois impactos negativos: primeiro, favorecem a impunidade; segundo, contribuem para deseducar a população. As modificações propostas pelos deputados foram rechaçadas por ambientalistas e moradores da região a favor da criação do parque.

Nesse contexto, em junho de 2006, uma comissão formada pela Associação Amigos do Parque Cristalino teve uma audiência com o governador. Durante a audiência, foi entregue ao chefe do executivo estadual um ofício no qual os signatários pediam que as áreas que foram desflorestadas após a criação do parque não fossem excluídas do novo traçado. Os termos do documento também argumentavam que as áreas estratégicas do ponto de vista da conservação deveriam ser mantidas dentro dos novos limites, bem como as principais belezas cênicas do lugar.

Por fim, o documento lembrava que uma eventual redução de última hora nos limites e consequentemente na área total do parque poderia resultar em perda de recursos para o estado. Esse seria o caso, por exemplo, do apoio financeiro oferecido pelo Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), do governo federal. (A propósito, notícia recente dá conta de denúncia envolvendo a gestão de recursos do Arpa recebidos pelo estado; ver ‘Fundo denuncia má gestão de recursos para o meio ambiente em MT‘, do portal 24HorasNews, publicada em 10/5/2010.)

O tempo seco ‘migrou’

O caso, contudo, continuou se arrastando. Ainda em 2006, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto que reduzia as dimensões do parque. Foi quando o Ministério Público Estadual (MPE) interveio, impetrando uma ação civil contra a medida aprovada pelos deputados. No início de 2007, uma decisão judicial favorável ao MPE deu ganho de causa àqueles que defendiam um traçado sem redução de área.

O que mudou nos últimos anos? Pouca coisa; ou melhor, de relevante mesmo, quase nada. É verdade que o chefe do executivo estadual e os ocupantes da Assembleia Legislativa mudaram, mas, como diz o ditado, ‘as moscas mudam, enquanto a carniça permanece a mesma’.

De resto, os pesadelos mato-grossenses continuam: as incertezas em torno da criação e da implantação de unidades de conservação no estado permanecem de pé, ao mesmo tempo em que o desflorestamento, os focos de incêndio e a grilagem de terras públicas seguem sendo adotadas como práticas lucrativas. A situação é particularmente grave no norte do estado, a região onde fica o município de Marcelândia. Por quê? Talvez por causa da colonização recente e agressiva da região, embora a imprensa costume recorrer a fatores neutros ou secundários, como faz agora, quando ‘explica’ o incêndio em Marcelândia recorrendo a fatores climáticos. No fim das contas, seria pedir muito que editores e repórteres da grande imprensa pensassem duas vezes antes de escrever as bobagens que escrevem sobre o que se passa no estado?

Ao que parece, o espetáculo oferecido pelo incêndio em Marcelândia já é página virada, ao menos para a grande imprensa. Ainda que os focos de incêndio não tenham sido inteiramente debelados (ver ‘Incêndio cessa em Marcelândia e avança por floresta no Mato Grosso‘, de O Globo), a grande imprensa pouco ou nada disse sobre o assunto nesta sexta-feira (13/8), contrastando com o estardalhaço de ontem. Ao que parece, o tempo seco ‘migrou’ e agora provoca incêndios em outras regiões, dentro ou fora do país… (ver, por exemplo, as matérias ‘Grandes incêndios florestais atingem Mato Grosso e Tocantins‘, da Folha de S.Paulo; ‘Incêndios florestais atingem Portugal e matam dois bombeiros na Espanha‘, do portal G1; e ‘Chuva ameniza poluição em Moscou; fumaça de incêndios já chegou ao Cazaquistão‘, da Folha de S.Paulo, todas publicadas em 13/8).

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Biólogo e autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)