Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os riscos do sucateamento moral

Promover um novo modo de criação, difusão e utilização do conhecimento não é tarefa fácil para qualquer governo de esquerda, principalmente da América Latina. No Brasil, a dificuldade parece maior ainda depois do verdadeiro sucateamento moral promovido por políticas neoliberais. A impressão é de que privatizaram nossas almas para a construção de um mundo sem fronteiras, hegemônico em idéias e políticas públicas receitadas por organismos internacionais.


Nem os profissionais de imprensa parecem se dar conta disso, pois tem sido cada dia mais difícil ler reações adversas a questões importantes para o futuro do país. Por que a passividade? Por que a opção por um jornalismo que nos submete a processos de desmoralização, agressões gratuitas e coloca nossa auto-estima lá embaixo? Somos vítimas de nós mesmos ou de um grande acordo internacional que promove desestabilizações de países em desenvolvimento para mantê-los subjugados, subservientes?


Fico com a primeira opção. Somos vítimas do nosso complexo de inferioridade, da nossa falta de vontade política de mobilizar a sociedade para a promoção de mudanças que visem um país mais justo e com melhor distribuição de renda. Quem mora na capital federal e tem a oportunidade de conviver com estrangeiros de países mais igualitários sabe o quanto eles se surpreendem com esse nosso jeito manso, submisso ao escárnio de políticos conservadores, latifundiários de terras e da mídia. Eles têm a obrigação de ficarem mansos, o problema é nosso. Mas lá entre eles somos dignos de merecer altas análises e estudos.


Cota de exibição


Não damos a merecida visibilidade à nossa inteligência, aos nossos cientistas, professores e pesquisadores, tampouco às situações singelas como a do ‘doido’ senhor Francisco, pai de Zezé e Luciano no filme 2 Filhos de Francisco. Obstinado em dar o melhor para os filhos, era o rádio que lhe oferecia forças para lutar. Encarou o prefeito e argumentou: ‘Senhor prefeito, as crianças precisam de escola. Elas têm direito viu!? É lei, eu ouvi no rádio.’


Que bela sugestão de pauta o cinema nos dá! Como estão os programas estruturantes do Fome Zero? Como estão os programas de mobilização para a educação no interior do país? Que mudanças ocorrem numa cidade quando o prefeito e a comunidade se unem para promover o bem comum? Como estão as cidades onde ocorrem experiências como a do orçamento participativo, da economia solidária, da agricultura familiar, das cooperativas agrícolas? E o nosso desenvolvimento científico e tecnológico, como estão nossos cientistas e pesquisadores?


O Brasil é alheio à agiotagem internacional, que para nós parece não existir. Mas há projetos de governo julgados pela mídia como representantes de uma mentalidade política atrasada e peremptoriamente fadados ao fracasso, como foi o caso da Ancinav, considerado um mal maior do que os juros, o déficit e o desregrado e feroz capital volátil. E talvez maior ainda do que a vergonhosa propriedade da mídia por parte de políticos brasileiros.


No semestre passado, quando o presidente Lula visitou a Coréia do Sul, a revista Veja fez uma grande matéria sobre aquele país, enaltecendo o seu desenvolvimento e sugerindo que o presidente o tomasse como exemplo. Esqueceu-se, no entanto, de ressaltar que a Coréia tem um Estado muito forte para o mundo globalizado, que lá existe investimento do Estado em cinema e cota de exibição. Por que a omissão? Qual o sentido dessa tentativa de deterioração de todas as políticas progressistas do atual governo?


Em 2003, por exemplo, todas as salas de cinema da Coréia do Sul eram obrigadas a exibir filmes coreanos pelo menos 146 dias do ano. Os EUA sempre foram contra ‘protecionismos’, e pressionaram o governo coreano para alterar a lei e extinguir as cotas. A Coréia, por sua vez, não se curvou aos apelos americanos, pois a nova política no campo do cinema tinha sido adotada justamente para quebrar uma situação de monopólio de empresas que dominavam o mercado de exibição, e consideravam mais prático e rentável importar filmes de Hollywood do que dar espaço para as produções locais.


Investimento estratégico


Em janeiro de 2004, o resultado dessa política foi acima do esperado: os filmes coreanos responderam por 47.9% do mercado doméstico. Filmes coreanos e americanos, juntos, totalizaram 94% do mercado.


Ao relatar esses resultados, uma reportagem de janeiro de 2004 do jornal The Korea Herald manifestou preocupação com a questão da diversidade cultural. Dizia que os filmes japoneses e chineses (incluindo Hong Kong e Taiwan) tinham conquistado 5 % dos espectadores, deixando somente 1% para audiência de filmes de outras nações do mundo.


E no Brasil, onde se lê, ouve e vê matérias com esse tipo de preocupação? Será que é o melhor caminho manter as fronteiras abertas para as importações em detrimento da proteção à produção local? Estamos percorrendo esse caminho na nossa TV a cabo. Qual será o resultado? A cultura que se manifesta pela arte é a alma, a essência, o fundamento da vida. O intercâmbio cultural é saudável, mas precisamos ver nós mesmos, tocar nossas almas, nossas essências. É impossível privatizar tudo isso ou corremos o risco de deteriorar todas as relações e eliminar o sentido de nação.


Se essa eliminação significasse a transformação de um mundo sem fronteiras, quiçá pudesse ser até interessante. Infelizmente, a realidade é outra. China, Coréia do Sul e Japão com suas dores, perdas e ganhos ao longo de uma existência milenar nos ensinam muito sobre o investimento em educação e cultura. O Banco Central da Coréia diz que investimento em filmes é estratégico para o século 21. ‘A indústria de filmes, além de ser livre de poluição, cria uma corrente de valores econômicos, como demandas por teatros e títulos de DVD’, afirma uma fonte do banco à reportagem do The Korea Herald.


De minha parte, torço para que Luciano Camargo, que li ser apaixonado por cinema, continue investindo nessa arte. Tomara que todos da equipe do filme nos contaminem muito mais da realidade brasileira e da crença na construção de um país melhor.

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Servidora pública federal, pós-graduada em Ciência Política, e especialista em políticas públicas no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)