Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os sinais dos molotov



‘Um rio que tudo arrasta se diz violento. Mas não se dizem violentas as margens que o oprimem.’ Bertolt Brecht


Em 1998, quando a França sagrou-se campeã do mundo pela primeira vez em sua história (naquela estranhíssima final contra o Brasil), poucos notaram que seu índice de desemprego era um dos mais altos de todos os tempos: cerca de 13% da população economicamente ativa não tinha trabalho. Ironicamente, os grandes nomes daquela seleção eram imigrantes (ou descendentes de imigrantes) como Zinedine Zidane (Argélia) e Lilian Thuram (Guadalupe). Com a conquista da Copa do Mundo, a explosão de alegria que tomou conta dos franceses parece ter ajudado a contornar os problemas econômicos durante sete anos.


Hoje, jovens conterrâneos de Thuram e dos pais de Zidane saem às ruas francesas não em explosão de alegria, mas em explosão de fúria contra a mesma sociedade que lhes dá as costas, situação sublinhada pelas palavras do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, ao referir-se aos manifestantes como ‘ralé’.


No desenrolar dos fatos, observamos que o alvo principal das manifestações tem sido os carros, incendiados por coquetéis molotov. Até o momento foram mais de seis mil veículos destruídos, cerca de mil jovens detidos e um número não calculado de coquetéis molotov detonados. Em meio aos números, a constatação de que tanto os automóveis quanto os coquetéis funcionam com o mesmo combustível: a gasolina.


Portanto, temos no cerne da questão o principal bem simbólico do sistema capitalista, que sustenta o modelo de vida adotado pelo mundo ocidental industrializado. A mesma gasolina que movimenta os automóveis é a que os incendeia, numa espécie de mensagem cifrada do próprio sistema que mais uma vez nos dá mostras de seu caráter autofágico. O mesmo petróleo que fomenta a invasão do Iraque é a matéria-prima das explosões que mataram 57 pessoas na Jordânia. Como lidar com o paradoxo de um modelo que precisa da pobreza para se sustentar, já que é ela quem garante a acumulação acelerada do capital e mantém os salários baixos em decorrência da pressão exercida pela fila de desempregados?


Segunda revolução


Para piorar a situação, o governo francês responde com a expulsão dos jovens detidos, como um câncer a ser extirpado, em lugar de assumir sua responsabilidade e implementar medidas mais, digamos, libertárias, igualitárias e fraternas.


No atual contexto, a mídia comercial exerce um papel particular no estímulo à violência. O fotógrafo italiano Oliviero Toscani, conhecido mundialmente pela campanha United Colors of Benetton, disse certa vez que a publicidade produzia delinqüência ao incentivar a aquisição de produtos que a maioria do público não poderia comprar. Tragicamente as escolas de jornalismo ensinam que a morte é sempre notícia, sendo que a máxima estadunidense é: ‘If it bleeds, it leads’ (algo como ‘se sangra, é destaque’).


No Brasil, certa vez uma coleguinha me ligou e avisou: ‘Tenho uma boa notícia: o garoto que estava no hospital morreu’. Ela estava vibrante, pois sua matéria ganharia destaque no jornal. Operando dentro dessa lógica, a mídia grande transmite aos excluídos a idéia de que enquanto eles reivindicarem seus direitos apenas com palavras e passeatas, dificilmente terão visibilidade.


É a sociedade do espetáculo em pleno vigor, como definiu Guy Debord. A principal mercadoria é o espetáculo em si. Ainda que seja um espetáculo trágico, erigido sobre fogo e sangue, ainda assim é um espetáculo. E, como sabem os editores, todo espetáculo vende bem (if it bleeds…).


Numa perspectiva humanista, entretanto, a mensagem que os jovens das periferias de Paris transmitem ao mundo não é muito diferente da mensagem dos jovens favelados brasileiros e dos pobres do planeta em geral. As ações podem ser diferentes, mas o clamor pela distribuição de renda e acesso é o mesmo. Não é que a França esteja vivendo sua segunda revolução, ou o Brasil esteja imerso em guerra civil. O fato é que o sistema capitalista está em colapso no mundo inteiro, simplesmente porque de uma forma ou de outra ele incentiva a guerra, a intolerância, a destruição da natureza e a exploração do ser humano.

******

Editor do site FazendoMedia