Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os traços da insensatez

É indiscutível que o fato jornalístico meritório de destaque na semana recém-finda foi a publicação de charges cujo teor satirizava a cultura islâmica. O assunto recebeu ampla cobertura sob os mais variados ângulos. A repercussão tanto se prestou para explorações políticas quanto para, uma vez mais, fazer vir à tona a questão da ‘liberdade de expressão’, bandeira sempre pronta a ser tremulada no Ocidente.

Tirados os excessos retóricos – por vezes histriônicos –, seja no âmbito da política, seja na defesa da liberdade, o que resta é a demonstração da absoluta insensatez, fruto do crescente modelo de divulgação cada vez mais midiático e menos jornalístico. Para começar, foi um acontecimento do qual todas as partes envolvidas saíram perdendo, o que, de imediato, demonstra a irresponsabilidade dos implicados na publicação.

O infortúnio da informação inútil

Cabe relembrar que os tais desenhos já haviam sido publicados, em setembro, num periódico dinamarquês. À época, em que pese uma reação aqui e outra ali, o fato passou ao largo. O que, portanto, cinco meses após, terá motivado um jornal francês a republicar o material? Alegar mentalidade infantilóide seria exercício de avaliação muito pobre de consistência.

É sabido que, recentemente, as ruas de Paris, além de outras cidades no interior da França, foram palco de inúmeras cenas de violência, cujo foco irradiador proveio de segmentos periféricos, na sua maioria constituídos de franceses de ascendência árabe e muçulmana, por conta de reivindicações associadas a políticas discriminatórias. Após intervenções enérgicas, houve o estancamento dos protestos. Justamente quando a situação vinha caminhando para a pacificação (ainda que temporária), surge o fato jornalístico que serve de excelente estopim para revitalizar confrontos.

Ainda mais estranho foi o comportamento de outros jornais europeus que, em nome da ‘liberdade de expressão’, foram, ao longo dos dias, reproduzindo os desenhos. Não é possível que uma onda epidêmica de cegueira crítica tenha invadido a Europa. É inadmissível que jornais de tradição não tenham elaborado mínima análise conjuntural para perceberem a alta temperatura concentrada no mundo islâmico.

A publicação das charges se dá exatamente na contramão da lógica. Basta lembrarmos que, há pouco, se deu a vitória do Hamas, na Palestina. No Irã, cresce a pressão em torno da dubiedade quanto ao uso da energia nuclear. Em meio a um quadro de posições exacerbadas, vem um jornal e publica aquilo que, para o imaginário islâmico, representa uma afronta.

Num contexto conturbado, a publicação não se sustenta com base na defesa inalienável da ‘liberdade de expressão’, a menos que também se aceite que, do outro lado, há o direito de se expressarem livremente, seja pela imagem, seja pelas armas. É uma questão de perspectiva formatada por cada modelo cultural, razão pela qual é perigoso trilhar essa estrada.

Lições da história

A publicação das charges, acompanhadas estas de texto, intensifica diferenças culturais entre Ocidente e Oriente, potencializa conflitos em esfera política e desvaloriza a dimensão do sagrado no campo religioso. O estrago, portanto, é sistêmico. A reação, por sua vez, demonstra o elevado grau de intransigência da parte afetada, o que, aos olhos do Ocidente, faz crescer a rejeição ao entendimento entre os povos.

É óbvio que a reação, em diferentes partes da cultura islâmica, serviu para exploração política. Certos setores não poderiam haver recebido pretexto melhor. Então, diante de um quadro com tantas dificuldades para a tentativa de diálogo, é inaceitável considerar que responsáveis pela comunicação não tenham contabilizado previamente as possíveis e desastrosas conseqüências. Se houve intenção deliberada, também faltam elementos para avaliação mais criteriosa. O que fica de tudo é a inutilidade de uma informação. Afinal, o que o leitor (europeu, ou não) extrai de importante da ‘gracinha’ de uma charge?

Esta não é uma crítica contra a charge como forma de linguagem. O que se está pontuando é o uso dessa modalidade de expressão para fins imbecis. A questão é que, para uns, a imbecilidade se esvai em minutos; para outros, ela se torna a justificativa para extermínios. Essa é a equação sobre a qual editores não se debruçaram. Todavia, editores existem para que cumpram seus reais papéis, dentre os quais o olhar sensato para medir, analisar as implicações das publicações. Tal prudência não se confunde, em nada, com censura.

Será que, após tantas lições ministradas pela história, ainda não aprendemos o que devemos evitar para a disseminação do ódio?

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)