Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os midiocratas contra a publicidade

Estava demorando, mas agora voltou a normalidade no processo de implantação da nova televisão federal, constituída sob a também nova EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). O estranho silêncio das emissoras comerciais sobre a TV Brasil chegava a dar, a alguns, a impressão de neutralidade, ou até de indiferença, como se a montagem de uma rede nacional de televisão, apoiada em dotação estatal de R$ 350 milhões anuais e ainda com liberdade para captar publicidade, não tivesse maior significado no restrito e oligopolizado mercado da mídia eletrônica. Mas os empresários do setor já começaram a alvejar a Medida Provisória 398, por intermédio de sua vasta tropa de choque no Congresso Nacional, e o jogo agora transcorre de forma mais habitual e previsível.


Qual é a bronca dos ‘midiocratas’ com a nova TV? Certamente não é com o fato de estar sendo criada por medida provisória, em vez de projeto de lei a ser debatido no Congresso. Os resmungos em torno dessa formalidade são apenas isso, muxoxos, posto que é tão possível discutir a proposta governamental na forma de MP quanto de PL, assim como obstruí-la, se houve vontade para uma ou outra coisa. O que a mídia comercial não deseja é que se fortaleça a estrutura pública de televisão, sobretudo pelo acesso a recursos publicitários. Não quer um competidor que lhe roube audiência, depreciando suas tabelas de publicidade, e ainda dispute com ela as verbas dos anunciantes. Acha que isso é concorrência desleal.


Fora do bolo


Assim é que os artilheiros da radiodifusão comercial no Congresso já assestaram seus canhões contra a MP, fazendo com que boa parte das 132 emendas apresentadas tenham por alvo a questão da publicidade. Como o texto proíbe ‘anúncios de produtos e serviços’, mas autoriza a ‘publicidade institucional de entidades de direito público e privado, a título de apoio cultural, admitindo-se o patrocínio de programas, eventos e projetos’, os adversários da televisão pública querem definições legais precisas – na verdade, interdições – para os conceitos de ‘publicidade institucional’ e ‘apoio cultural’. Querem diferí-los bem da publicidade comercial convencional, para impedir que a TV Brasil ponha as mãos no bolo de R$ 60 milhões que estima obter com a captação de recursos privados.


O curioso é que, mesmo sem amparo legal sólido, a venda de publicidade nas emissoras públicas ocorre já há muitos anos, quase duas décadas, sem que os midiocratas e seus parlamentares se dessem ao trabalho, até agora, de contestá-la. E por que não o faziam?


Por um lado, porque defendem o enxugamento do Estado e achavam ótimo que os governos, federal e estaduais, reduzissem progressivamente os aportes que fazem às emissoras públicas. E por outro lado, porque não se preocupavam com migalhas.


Para se ter uma idéia, os recursos de publicidade captados pela TV Cultura de São Paulo, a maior emissora pública do país, estão em torno dos R$ 30 milhões anuais, ou 120 vezes menos do que faturou a TV Globo em 2006 (R$ 3,6 bilhões). Estima-se que todo o campo público, reunindo as emissoras educativas abertas e as estações públicas da TV a cabo – canais legislativos, comunitários e universitários – opere com um orçamento anual na faixa de R$ 400 milhões, dos quais apenas uma parte, inferior a 20%, vem da publicidade.


Os R$ 60 milhões ambicionados pela TV Brasil, nesse contexto, não provocariam nenhum abalo estrutural nos fundamentos do negócio televisivo. Mas podem ser apenas a meta inicial da nova rede pública, que surge vitaminada por investimento estatal e apoio governamental de proporções inéditas. Se a rede alcançar seu objetivo de comunicar-se com a grande massa telespectadora, produzindo índices de audiência superiores ao máximo de 5% obtido pelas atuais emissoras públicas, entrará no jogo para competir com as redes comerciais. E, obviamente, fará os R$ 60 milhões iniciais multiplicarem-se, porque será atrativa aos anunciantes.


Equipe competente, rede competitiva


As condições para isso estão dadas. A equipe de gestão é competente e, mantido o aporte anual de R$ 350 milhões do orçamento federal, até o final do governo Lula a TV Brasil terá obtido R$ 1,4 bilhão para custeio e investimentos, o que é dinheiro suficiente para fazer uma boa e atraente programação. Não lhe será difícil captar outros R$ 300 milhões em publicidade comercial, se pontuar no Ibope e repercutir na opinião pública. De grão em grão, encherá o papo e poderá incomodar os interesses privados em poucos anos. É tudo o que os midiocratas não querem.


Daí que vejam ‘desvirtuamento’, quando a televisão pública deseja formalizar em lei o direito de captar publicidade que já exerce na prática. O fato de explorarem uma concessão pública para fins privados sem qualquer contrapartida ao Estado, salvo os impostos que pagam (quando pagam), certamente não vem ao caso, na análise que fazem. Ou seja: as emissoras comerciais podem faturar bilhões sem pagar um tostão pelas concessões que utilizam, mas o Estado não pode arrecadar esse mesmo tostão no mercado publicitário, porque é ‘antiético’. É uma lógica mais que conveniente.


Quer dizer, então, que a publicidade em televisão pública não deve ser regulada? Que não se deve aclarar o que significam, na prática, ‘publicidade institucional’ e ‘apoio cultural’? Que a precariedade legal e a rotina do fato consumado que imperam no mercado televisivo em geral devem eternizar-se, porque a boa regulação é aquela que não atrapalha os negócios – sejam eles privados ou públicos?


Certamente não. A publicidade em TV pública deve ser regulada, mas para que seja autorizada. A injeção de recursos captados no mercado anunciante é um instrumento de equilíbrio financeiro que protege as emissoras públicas das idiossincrasias de governantes, sempre tentados a fechar a torneira dos repasses de verbas na primeira dificuldade de caixa que enfrentam. Uma televisão pública que tenha independência política do governo, mas dependa do dinheiro que venha dele, nunca terá real autonomia. O acesso à publicidade, se não garante, reforça essa autonomia.


Responsabilidade social e interesse público


O mercado anunciante, as agências de publicidade e as emissoras comerciais sabem muito bem o que significam ‘publicidade institucional’ e ‘apoio cultural’. As Casas Bahia, por exemplo, sabem que não vão explodir em vendas quando inserem publicidade na TV Cultura, para financiar a digitalização do acervo da emissora, um patrimônio da cultura brasileira (serviço que, aliás, já está bem adiantado). Sabem que estão fazendo uma ação de responsabilidade social, de amplo interesse público, e que o seu retorno é de imagem, é a simpatia que merecem pelo esforço, portanto um retorno institucional. Sua agência também sabe disso, e as emissoras comerciais idem.


A confusão que se estabelece entre publicidade institucional e comercial vem da ausência de tradição do mercado brasileiro, na produção de peças publicitárias do primeiro tipo. Ainda é anti-econômico para os anunciantes investir em filmes institucionais, para veiculação exclusiva em TV pública. Se tiverem custos de produção, além dos custos de veiculação, a equação ficará pesada e desmotivará o apoio cultural que desejam dar às emissoras públicas. Mas isso pode se resolver se emissoras, anunciantes e agências trabalharem juntas, na produção de materiais institucionais que sejam adequados à grade da televisão não-comercial e tenham custo compatível.


Sim, muito bem, mas ao fim e ao cabo a inserção de publicidade não vai desvirtuar mesmo a programação, produzindo também ali as baixarias e os programas de apelo fácil, vazios de ética e de conteúdo? Não, se a publicidade for minoritária no conjunto das receitas das emissoras públicas, para que a lógica comercial não domine, e se for rigidamente concebida, aplicada e controlada, com espírito público e no interesse coletivo. É algo plenamente possível, tanto que a TV Cultura de São Paulo, a TVE do Rio de Janeiro, a Rede Minas, a TVE-Bahia, a TVE-RS e tantas outras mantém intacta a sua credibilidade, mesmo com os comerciais que veiculam.


Em resumo, se a idéia de regular a publicidade da futura TV Brasil vem para viabilizá-la e para fortalecer todo o campo público da televisão, que seja bem-vinda e discutida com a seriedade que merece. Mas se vem, como em muitos outros assuntos, como álibi para que a televisão comercial iniba o crescimento do setor público na radiodifusão, deve ser rechaçada com todo o vigor.

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Jornalista