Tuesday, 05 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Papai Noel ensanguentado

A ópera Tosca, de Giacomo Puccini, foi encenada 46 vezes nos palcos brasileiros desde a estreia mundial, em janeiro de 1900. Mas só na última, que encerrou a temporada no sábado (13/12), no Theatro Municipal de São Paulo, a plateia, eletrizada, presenciou a tortura em cena, coisa inédita em todo mundo operístico. Como a montagem atual transpôs o libreto original da Roma de 1800 para os recentes anos 1970, a relação com os anos de ditadura começou a pipocar. Ficou clara no segundo ato, durante a tortura do pintor Cavaradossi, que escondeu um preso político fugido da prisão, quando, emoldurada na parede do gabinete do chefe de polícia, surge a foto do general Emílio Garrastazu Médici ao lado do papa Paulo VI.

A metáfora não poderia ter surgido em momento mais propício do que agora quando, meio século depois do golpe militar de 1964, que nos legou 21 anos de terror, a Comissão Nacional da Verdade revela o relatório final de uma investigação que ouviu 1.200 vítimas.

Foi ao mesmo tempo um presente de Natal às famílias dos desaparecidos que até hoje não tinham ouvido do Estado que seus mortos foram realmente assassinados, nem onde ou por quem. Nem se sabe quantos são nem onde estão. Foi um presente de um Papai Noel ensanguentado.

Esclarece alguma coisa a entrevista ao Observatório da Imprensa de José Luiz Del Roio, historiador, ex-senador italiano e deputado do Parlamento Europeu, membro da Comissão Nacional da Verdade e vítima – sua mulher Isis Dias de Oliveira, militante da Ação Libertadora Nacional, desapareceu em 1972. Mas um pacote de Natal que deixa muito a ser desembrulhado.

– Descobrimos que a ditadura foi muito pior do que se pensava. Uma paranoia anticomunista. Tinha um serviço secreto que controlava um serviço secreto, uma censura que deixava mudas cinco mil peças de teatro, livros, músicas, filmes, até a arquitetura de [Oscar] Niemeyer, uma comunidade de informações que era um ninho de cobras; um tratado de colaboração absoluta do Itamaraty, que atuava no mundo em uma rede de espionagem de esquerdistas… e a Comissão apenas arranhou esses casos.

O presente de Natal foram 434 casos documentados de vítimas, mas, segundo Del Roio, isso não foi nada.

– Foi o que conseguimos identificar com nome, endereço, atividade, situar no espaço e no tempo. Mas como saber de quem são as ossadas achadas na vala [do cemitério] de Perus, onde se acreditava estarem enterrados 1.049 cadáveres, e descobrimos cinco, seis em cada urna? Como identificar os 8.300 indígenas assassinados, os crimes contra mais de mil camponeses, o terror espalhado naqueles anos onde existia até um navio-prisão nos rios de Mato Grosso? E a selvageria na Baixada Fluminense?

Exemplo de Sábato

O Brasil demorou a expurgar e reconhecer esses horrores, quando a América Latina já tratou, puniu, condenou os seus torturadores. Um ex-presidente até morreu na prisão na Argentina, o general Jorge Rafael Videla.

– O que fizemos foi pouco, uma comissão de sete membros para vasculhar os 80 milhões de habitantes do Brasil na época. Num país que costuma varrer suas selvagerias para debaixo do tapete e queimar arquivos como acontece desde os tempos da escravidão.

Del Roio reconhece que não cobrimos nem o período mais curto, nem se fez justiça aos 7.200 militares que foram perseguidos ou mortos, perderam a aposentadoria e viram as famílias violentadas por serem contra a brutalidade instaurada nas Forças Armadas.

– Exército, Aeronáutica, Marinha não negaram que visitássemos suas instalações, todas reformadas, mas não falam, não admitem nem tortura, nem estupro como recentemente garantiu o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Enquanto não condenarmos o Ustra, ninguém vai falar.

Metade dos 377 agentes da repressão que praticaram tortura e assassinatos está viva.

– E esse crime precisa resultar em prisões, a ferida precisa ser fechada. Como a sociedade vai suportar, saber e deixar essas barbaridades impunes, a tortura que continua a ser praticada em favelas? Há um capítulo sobre o papel da Igreja na repressão, primeiro do lado oposto, depois do lado dos mais fracos. Um capítulo sobre gêneros, mostrando o machismo, e como a ditadura odiava as mulheres. Apesar do coronel Ustra, todas sofreram no mínimo violência sexual.

Mas há um temor de que as 2 mil e tantas páginas redigidas às pressas e depositadas em oito salas do Arquivo Nacional, de difícil leitura, não sejam nem abertas a pesquisadores, jornalistas e interessados, e muito menos codificadas.

– Vai levar tempo, anos, décadas, e nem temos como relator para as nossas atrocidades um mestre da escrita como Ernesto Sábato, que foi o relator argentino. São vários livros a sair dali para escrever a nossa história nacional e internacional. Nossa ditadura apoiava, por exemplo, [o ditador português António de Oliveira] Salazar na repressão à luta pela independência na África, e só em 1974 mudou de lado pela pressão dos países árabes, ou não nos venderiam petróleo. Nós ainda temos essa dívida com a África negra.

Não ao esquecimento

O que seis dos sete membros da Comissão exigem – menos o jurista e escritor José Paulo Cavalcanti, autor da “autobiografia” de Fernando Pessoa – é que os repressores sejam punidos por terem cometido crimes contra a humanidade, que não prescrevem nem são passíveis de anistia.

– Eles dizem que agora é preciso ouvir os dois lados, mas se esquecem de que os do lado de cá, os nossos, já foram julgados, condenados e de quebra ganharam torturas bárbaras e nunca imaginadas. Falta justamente o lado de lá, que ficou impune. Os crimes do Estado nunca foram julgados.

O que José Luiz Del Roio e a comissão esperam é que não se dê o trabalho por concluído – “agora é que vai começar” – e para isso é preciso pressão da imprensa sobre o Judiciário. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e até a Organização as Nações Unidas já se manifestaram a favor do relatório e aguardam uma resposta da nação para esta calamidade exposta.

– O documento é um marco na história, é um documento do Estado, com uma importância extraordinária. Isso muda a nossa memória, o que se acreditava ser a verdade. Não dá para descobrir tudo isso, pôr um ponto final e, na virada do ano, esquecer.

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Norma Couri é jornalista