Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Para além da tragédia

A guerra ao narcotráfico no México já causou mais de 35 mil mortes, entre ações de criminosos e repressão do governo, desde que o presidente Felipe Calderón assumiu, em 2006. Entre os riscos que um repórter mexicano enfrenta estão sequestros, mortes e ameaças de bomba em redações de jornais.

Para o jornalista, escritor e dramaturgo Juan Villoro, 55, outro desafio jornalístico do momento é discutir como e em que linguagem a violência deve ser tratada na imprensa escrita e na internet.

Professor de literatura na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), Villoro colabora com várias revistas, como a peruana Etiqueta Negra e a colombiano-mexicana Gatopardo, e é colunista dos jornais Reforma (México), El Mercurio (Chile) e El Periódico de Catalunya (Espanha), além de escrever esporadicamente para El País.

Ficcionista premiado, conquistou o prestigioso Herralde, por El Testigo (2004). Também escreve literatura infantil e teatro. Até o final do ano, a Companhia das Letras deve lançar sua primeira obra no Brasil, O Livro Selvagem.

Villoro falou à Folha em Buenos Aires, onde veio assistir à estreia de sua peça “Filosofia de Vida” num teatro da tradicional avenida Corrientes, e participar de oficina da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano.

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Você diz que o jornalismo está fazendo muitas concessões à violência. De que modo?

Juan Villoro – No México há uma grande discussão sobre como retratar a violência do narcotráfico, mas acho que ela se aplica a vários países, como a Colômbia e o Brasil, por causa do narcotráfico e do crime organizado, e até mesmo a Londres, para usar um exemplo mais recente. É inevitável que, ao publicarmos notícias e fotos, amplifiquemos o efeito de um ato violento. Penso que há limites que deveriam ser discutidos, sob risco de fazermos mais propaganda da violência e alimentá-la. E o uso da linguagem tem um papel importante nisso.

Por exemplo, em meu país, quando os traficantes dizem que sequestraram alguém, usam o termo “levantado”. E os jornais passaram a fazer o mesmo. É um erro, porque se trata de uma expressão que ameniza o horror do fato. Por outro lado, há uma busca pela audiência, hoje potencializada pela internet, que faz com que tudo o que tenha sangue seja valorizado. A máxima “if it bleeds, it leads” [se sangra, tem destaque] nunca foi tão verdadeira.

O que muitos editores não se dão conta é que, se você busca ressaltar apenas o mais sangrento, corre o risco de provocar uma distorção da verdade, na qual os acontecimentos mais importantes são os violentos. Na verdade, a violência é sempre consequência de alguma coisa, parte de um contexto que precisa ser explicado.

Você diz que a internet está fazendo com que o jornalismo fique cada vez mais homogêneo. Por quê?

J.V. – O que constato observando a imprensa europeia, norte-americana e latino-americana é que, mais do que nunca, para os veículos, parece ser necessário publicar aquilo que todos publicam. O acesso quase geral a informações homogêneas curiosamente criou um pânico de sair do homogêneo.

Há um medo generalizado. Os jornalistas não podem se conformar com a ideia de que algo que está na capa de sete jornais não esteja na capa do seu. Então a reação é ir atrás do mesmo. Trata-se de um impulso de sobrevivência.

Isso é bom ou ruim?

J.V. – Em certo sentido, é bom, porque é mais fácil que todos fiquem bem informados sobre acontecimentos de alcance mais global. Mas a fortaleza do jornalismo não está aí, e sim no oposto disso. O jornalismo pode fazer coisas únicas, tanto no papel como em formato digital, basta que haja investimento. É preciso valorizar a narração de histórias, pois elas dão sentido ao mundo. Creio que, nesse momento de confusão e transição, é preciso recobrar a confiança nos recursos do próprio jornalismo.

Pode dar um exemplo?

J.V. – É possível aproveitar essa onda de mudanças num sentido positivo. Se é mais fácil hoje obter as notícias que todo mundo tem, por que não usamos menos gente nisso, aproveitando mais o material de agências internacionais? Se economizarmos no comum, é possível fazer com que a orquestra funcione quase sozinha e investir nos solistas, naqueles jornalistas que farão a diferença por sua capacidade de encontrar bons assuntos e narrá-los bem.

Por um lado, é um jornalismo mais caro, gasta-se com a contratação de bons profissionais, tempo, viagens. Mas pense que se poderia economizar em outras coisas.

Por isso a sua defesa da crônica?

J.V. – Sim. Quando surgiu a fotografia, a pintura recobrou recursos que a diferenciavam dela. O mesmo se passa com o jornalismo diante das novas tecnologias. E a crônica é o melhor recurso que o jornalismo tem para enfrentar esses novos tempos. É a mescla da informação com a emoção, do mundo objetivo, público, com o mundo privado ou íntimo. Por meio dela, ao mesmo tempo pode-se descrever a notícia que afeta uma comunidade e entender sua repercussão individual. E, a partir disso, analisar por que essa notícia transforma a vida de certas pessoas.

Interessa-me defender a crônica do cotidiano, situações, cenas mínimas, um jornalismo colorido que não é o mais urgente nem o mais necessário, mas que sempre permitiu que o jornalismo prosperasse, desde os tempos de Machado de Assis ou Nelson Rodrigues, exemplos brasileiros que adoro.

Mas, apesar disso, as revistas de crônica, que estão na moda na América Latina, como a Etiqueta Negraou a Gatopardosempre amargam dificuldades financeiras.

Sim, é uma situação complexa. A crônica tem muito prestígio cultural. Se você perguntar a um ministro da Cultura, a um empresário ou a um leitor comum se eles gostam de crônica, vão dizer que sim, porque ela evoca o humano, o real. E ninguém vai se dizer contra isso. É diferente com relação ao teatro ou à música clássica, que têm públicos mais definidos.

No entanto, todas as revistas que se dedicam a crônicas têm dificuldades para subsistir. É muito difícil que paguem bem aos cronistas. Muitas, quando pagam, é de forma simbólica e heroica. Além de não terem verba para te mandarem viajar ou para facilitar que você apure a informação.

Outro dia, eu estava olhando o índice de um livro meu, de crônicas. Notei que 80% delas tinham saído em veículos que não existem mais. São publicações efêmeras, suicidas. Nós, cronistas, temos prestígio, mas a nossa transcendência não é tão grande. A saída é escrever muito, para muitos veículos, e escrever livros que tenham potencial de venda, como no meu caso, que faço livros infantis. Eu posso viver do meu trabalho, mas para isso trabalho o tempo todo.

Mas acho que, se me dessem as condições da New Yorker, eu me sentiria conformado e não faria o mesmo tipo de trabalho. Os cronistas têm certa dose de masoquismo funcional, o que nos machuca nos fortalece (risos).

Em seu livro 8.8 – El Miedo en el Espejo, sobre o terremoto do Chile, você faz considerações sobre a essência dos mexicanos que me fizeram lembrar a busca de Octavio Paz (1914-98) em Labirinto da Solidão(1950). É uma influência?

J.V. – É uma referência. Nesse livro, Paz tenta fixar uma identidade do mexicano por trás das sucessivas histórias que viveu. Foi um exercício muito interessante, que serviu para que o mexicano se reconhecesse em sua diferença. Essa era a proposta inicial, mas o próprio Paz percebeu que havia algo redutor nessa busca, porque o mexicano não pode ser sempre tipicamente da mesma maneira. Então ele escreveu um livro, que se chama Postdata (1950), em que dinamiza essas questões. Diz que o mexicano não é uma essência, mas uma história. Que não se deve buscar seu verdadeiro rosto, mas entender que esse rosto tem uma história e vai mudando.

Sempre que escrevo, estou em busca das características do mexicano, mas gostaria de pensar que não são características definitivas. Há muitas maneiras de ser mexicano. Hoje, o mexicano típico existe como um recurso folclórico e nada mais.

Em 8.8, você destaca a capacidade, ou mesmo a certeza, de sobreviver.

J.V. – Exato, porque tomo o exemplo de como sobrevivemos ao terremoto de 1986 e de como essa ideia de superar uma tragédia se incorporou à nossa personalidade. O mexicano adota no seu dia a dia uma conduta pós-apocalíptica. Vemos a realidade desastrosa, por exemplo na Cidade do México, que é contaminada, insegura e cheia dos problemas conhecidos. Isso nos traz uma série de ameaças tremendas. Mas não as vemos como o anúncio de algo terrível que vai acontecer, e sim como o resultado de algo mítico, que já passou e do qual já nos salvamos. Estamos sempre além da tragédia. Não passa de autoengano, mas é eficaz. Graças a isso, podemos viver. Pensamos: está tudo muito grave, mas continuamos de pé.

Em um texto para a revista peruana Etiqueta Negra, você analisou a personalidade e o drama do goleiro alemão Robert Enke, que se matou aos 32 anos. Qual é o elemento dramático do futebol que te atrai?

J.V. – O futebol me interessa muito, por isso li tanto Nelson Rodrigues. Para um mexicano, o futebol é sempre uma tragédia. Porque adoramos e ao mesmo tempo jogamos muito mal. O México sempre tem um plano “b” nas copas que é torcer para o Brasil. Plano “b” para nós é “b” de Brasil. Escrever crônicas de futebol no México tem mais a ver com o desejo, com a paixão, do que com grandes vitórias, pois nunca as tivemos. E eu, mais do que um cronista esportivo, sou um cronista da torcida e da ilusão.

O que me cativa é tentar entender por que se enche um estádio, por que as pessoas organizam sua vida de maneira ilusória, por que alguém se esquece do seu aniversário de casamento, mas não de que, nesse dia, Garrincha fez dois gols em não sei qual time. Para conhecer uma época, temos que entender como as pessoas se divertiam, e a forma de diversão mais organizada do planeta em nosso tempo é o futebol. Foi por isso que me interessou o drama de Enke, um jogador jovem, que atingiu a fama numa das posições mais difíceis e isoladas. E resolveu se matar.

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[Sylvia Colombo, é correspondente da Folha de S.Paulo em Buenos Aires]