Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Para estar à altura da abertura

A abertura dos arquivos da repressão ainda existentes é irreprimível. Não depende da vontade de autoridades. Corresponde a uma etapa da reconquista da democracia que passou pela primeira grande derrota da ditadura nas urnas, em 1974, e teve mais um episódio expressivo no domingo (31/10), trinta anos depois.

Não por acaso, a lei que trata do assunto (nº 8.159) foi assinada, em 1991, pelo primeiro presidente eleito diretamente após o golpe militar, Fernando Collor – e, brasileiramente, por um ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, também signatário, como ministro do Trabalho, do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968.

Mas se não houver tomadas de posição firmes, e acompanhamento adequado, a verdade que se busca ficará mais distante.

O decreto briga com a lei

O diretor de redação do Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), Márcio Chaer, diz que o decreto (nº 4.553) assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 27 de dezembro de 2002 não tem valor jurídico: ‘O decreto é evidentemente nulo porque muda a lei. Esta diz que o máximo de tempo que um documento pode ser secreto é 60 anos (30 + 30). O decreto diz que o segredo pode ser eterno. Não pode’.

Mas como acontece um atropelo desses?

‘Essas coisas são assim mesmo’, responde Chaer. ‘Fiz um levantamento para mostrar que mais da metade das leis brasileiras levadas ao questionamento do STF são consideradas inconstitucionais [reportagem publicada na revista Exame]. As outras não são necessariamente constitucionais. A diferença é que não são questionadas. Em 1989 entrei com habeas data na Câmara dos Deputados para ter a lista dos jornalistas empregados na Casa. Não me responderam até hoje. É preciso ter um interesse especial para tocar lutas como essa em frente.’

Diferentemente do que sugere editorial publicado pelo Estado de S.Paulo no domingo, 31, o presidente Lula não precisa mudar a legislação para que haja acesso a documentos sobre a repressão. ‘A classificação ou desclassificação dos documentos pode ser feita por decreto. Ou seja, não precisa de lei’, esclarece Chaer.

Copidesque-tapetão

Ainda que a autoridade mande abrir determinado arquivo, reclassificando-o ou desclassificando-o, como está no texto do decreto de FHC, a busca da verdade não estará garantida. Recentemente, em meio a um grupo de jornalistas, Chaer foi convidado pelo diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Mauro Marcelo, a visitar a repartição.

‘Cada jornalista teve direito à sua ficha do antigo SNI pedida no começo da visita e entregue uma hora depois. A minha só foi entregue 30 horas depois’, relata, externando a suspeita de que, nesse meio tempo, sua ficha tenha sido copidescada. Outra jornalista, a repórter Tânia Monteiro, do Estado de S.Paulo, reclamou que encontros estudantis do qual ela participou não estavam registrados, enquanto eventos aos quais ela nunca foi lhe eram atribuídos. Ela pediu e a correção foi feita na hora’ [clique em Próximo Texto, no pé desta página, para ler o artigo de Márcio Chaer].

Jornalismo sem cultura política

O segundo obstáculo é a incompetência da mídia para lidar com o assunto. O primeiro sinal disso foi a batatada do Correio Braziliense, que poderia ter evitado o erro de dar como de Vladimir Herzog fotos de outra pessoa. O jornalista Sérgio Gomes da Silva, ouvido na noite de sábado, 16 de outubro, disse que as fotos não eram de Herzog. A redação do jornal não lhe deu ouvidos.

O Correio Braziliense acertou um tiro no alvo que não viu. Assim, o assunto veio à tona por caminhos macunaímicos. O jornal não trabalhou com seriedade. Há surpresa nisso?

Nos dias seguintes, houve novos erros, apontados neste Observatório.

Os desdobramentos poderão tornar as coisas ainda menos razoáveis, caso jornalistas competentes não se ponham a trabalhar no assunto.

Veja-se o caso de material sobre a guerrilha do Araguaia publicado de maneira ignóbil na IstoÉ (‘Os documentos do Araguaia’, 3/11). Puro sensacionalismo. Incapacidade absoluta de situar o assunto em contexto histórico. Rebaixamento ao nível rasteiro de um dos lados beligerantes.

Só para dar idéia do que é tratamento digno para um assunto difícil (a tentativa guerrilheira foi pura insanidade política que só atrapalhou a luta pela redemocratização, mas os caídos são dignos do respeito que se deve aos combatentes honestos), veja-se o que escreveu Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada:

‘O que se deu no Araguaia foi o paroxismo do choque dos radicalismos ideológicos que, com seus medos e fantasias, influenciaram a vida política brasileira por quase uma década. A esquerda armada supusera que estava no caminho da revolução socialista, e a ditadura militar acreditara que havia uma revolução socialista a caminho (…). Nas matas perdidas do Araguaia, o PC do B tornara-se a única – e derradeira – organização política brasileira a ir buscar na ‘violência das massas’ a energia vital de seu projeto comunista’.

Ter sofrido não passa nunca

O terceiro problema, lamento dizer, é o leitor.

Como não teve mídia competente, escolaridade, acesso à melhor historiografia, raciocina com conceitos vagos e despolitizados. Em meio a manifestações de militantes das causas antagônicas, seja os que reclamam uma punição já descartada pela anistia, seja os que têm saudade da ditadura, predomina uma visão ingênua e inepta.

Como a do leitor do Estadão (Fabio Figueiredo) que escreveu: ‘Muitos dos envolvidos, de ambos os lados, ainda estão vivos. Seria muito ruim para o País abrir essa ferida’.

Leitor, é para os vivos, de todos os matizes políticos e ideológicos – desde que ajam dentro da convivência democrática – que se quer buscar a verdade.

Leitor, a ferida nunca se fechou. Como escreveu Léon Bloy, citado por Edgard Mata Machado, citado por Milton Coelho da Graça no artigo ‘Perdoar, sim. Esquecer, nunca’, dado no portal Comunique-se:

‘Sofrer passa, ter sofrido não passa nunca.’

A verdade não muda o que aconteceu mas muda o que vai acontecer.