Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paradoxos censórios

Um paradoxo orna os atos de censura perpetrados em países tão díspares quanto Brasil, Cuba e Reino Unido.

Perguntado numa pesquisa em qual deles o direito de expressão sofre mais restrições, um cidadão qualquer medianamente informado não hesitaria em atribuir à ilha caribenha o título de campeã nessa modalidade totalitária. O acerto da resposta, todavia, é relativo porque a censura tem várias faces e disfarces e frequenta tanto democracias de fato e de direito, quanto as só de direito – que são muitas – e, é claro, os regimes ditatoriais.

Em Cuba, a blogueiraYoani Sánchez é mais livre para se expressar do que muitos blogueiros, escritores, jornalistas, cronistas, brasileiros ou ingleses – sim, ingleses, e de qualquer outra nacionalidade que porventura tenham a desgraça de ver um texto de sua autoria veiculado no Reino Unido, ainda que pela internet. Não há lei mais draconiana que a Libel Law (Lei de Calúnia) inglesa. Tanto que jornais americanos estão considerando bloquear o acesso a seus sites no Reino Unido, e impedir a exportação para lá das edições impressas.

Ela é muito útil como instrumento intimidatório contra jornalistas do mundo todo, especialmente os ‘frilas’, escritores e blogueiros. Simplesmente porque custa uma fortuna defender-se de uma acusação de calúnia em Londres, a capital do litígio.

Censura veta a crítica

Advogados aconselham escritores, colunistas, pequenos jornais e blogueiros processados pela Libel Law a se retratarem, mesmo que o publicado seja comprovadamente verdadeiro. Uma disputa de 10 mil libras pode custar um milhão. E, ainda que vença a parada, o réu não será integralmente ressarcido dos gastos com sua defesa. Resultado: autocensura, o chilling effect, balde de água fria.

Ora, cá, no Brasil, a censura é exercida o tempo todo pelo Estado, nos três Poderes.

Quando a Assembléia Legislativa nega ao Superior Tribunal de Justiça licença – o que é uma prerrogativa surreal – para processar o governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB), está impondo censura à apuração da verdade, o que só reforça suspeitas.

As Comissões Parlamentares de Inquérito, essas sessões de teatro nas quais as maiorias invariavelmente bloqueiam convocações de testemunhas, são instâncias censórias do Legislativo. Idem, quando o deputado Michel Temer e o senador José Sarney (PMDB-AP) se negam a entregar notas fiscais de despesas de parlamentares referentes a anos passados.

A censura é pérfida e covarde – além de muito apreciada – ao restringir a mais poderosa – porque libertária – forma de poder: a informação.

Curiosamente, a censura veta aquilo de que é sinônimo, segundo os dicionários: a crítica.

Lei de Imprensa é imprescindível

Ninguém notou, nesse longo debate a respeito da volta dessa odiosa forma de repressão, que a imprensa responsável não precisa que se lhe ordene que não publique aquilo que, apesar de verdadeiro, possa pôr em risco a integridade física de alguém, como nos casos de sequestro em andamento. Não é a Justiça que silencia a mídia nessas ocorrências, mas o bom senso dos editores. Convencionou-se, há já algum tempo, manter em segredo tais casos enquanto as vítimas estiverem em cativeiro.

O Judiciário, por seu turno, vem impondo à mídia censura pretérita, presente e futura. Numa inacreditável decisão, o site Consultor Jurídico foi obrigado a retirar do ar notícia verdadeira, velha de vários anos, que estaria prejudicando a carreira de um médico. A revista está obrigada a suprimir a notícia sobre a condenação por negligência do cirurgião plástico Alexandre Orlandi França, pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em 2002. Decisão cumprida, recurso impetrado. Onde já se viu obrigar um jornal a retificar o passado, reescrever a história? Estes não pertencem aos protagonistas, mas à humanidade.

E o terceiro poder, o Executivo, é também pródigo em vetar a verdade, como no inquérito de Waldomiro Diniz, inconcluso, quiçá por engavetamento, há cerca de cinco anos, verdadeiro e vergonhoso calote da verdade passado pelo poder público na sociedade.

Dizem que a verdade dói, e ocultá-la pode parecer um lenitivo, mas é mera panacéia que conduz a dores mais atrozes.

Como na Irlanda, onde a An Garda Síochána – Serviço Policial Nacional da Irlanda – acobertou, por décadas, o escândalo de abusos sexuais por membros da igreja católica. Considerou que a manutenção do sigilo ‘para evitar o escândalo, a defesa do prestígio da Igreja e para a preservação do seu patrimônio’ era mais importante do que a justiça para as vítimas – crianças – de abuso sexual e físico.

O país necessita de uma súmula, em caráter de urgência urgentíssima, disciplinando a questão, mas uma Lei de Imprensa é imprescindível.

Inviolabilidade de imagem

Que nela se aproveite o que há de melhor na legislação americana, definindo da maneira mais precisa possível o significado de calúnia e aproveitando o conceito de fair comment, ou comentário razoável, justo; e o de actual malice, malícia de fato, intencional, cuja definição é: a história foi publicada sabendo o autor ser falsa, ou o foi com imprudente inobservância de sua veracidade ou falsidade.

Pela lei americana, a calúnia é, por definição, falsa. Verdadeira a notícia, não pode haver penalidade.

Além disso, o conceito de actual malice foi estendido a personagens públicos, autoridades em geral, artistas, celebridades, grandes executivos, esportistas.

Esta interpretação da Libel Law americana data de 1964, quando a Suprema Corte julgou o caso Times vs. Sullivan. No Times vs. Sullivan, a Suprema Corte disse que facilitar demais as coisas para agentes públicos ganharem causas de calúnia exerce um chilling effect, ou ‘efeito balde de água fria’ sobre a imprensa e sua capacidade de reportar com (responsável) agressividade os assuntos importantes do dia.

Um comentário razoável seria alguém dizer que considerou o governo de fulano muito ruim, ou relatar que alguém está sendo investigado, quando de fato estiver.

Raros blogueiros terão recursos para defender-se em nossa caríssima e lenta Justiça. Daí, cabe a estes observar com extremo rigor a diferença entre rumor e fato, fofoca e verdade.

Os magistrados devem avaliar a capacidade econômica das forças litigantes, dando a blogueiros não reincidentes, por exemplo, a oportunidade de se retratarem, em sendo o caso, e atribuir, como a Suprema Corte americana, um peso maior à liberdade de expressão – quando se tratar de agente ou pessoa pública – no seu eterno conflito com inviolabilidade da imagem.

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Administrador de empresas