Um paralelo macabro entre a aeronáutica do Brasil e da Argentina vem se confirmando com cada desastre aéreo. E enquanto a caça às bruxas continua, para colocar culpa em algo ou alguém sem que os gestores da aviação brasileira assumam seu papel, a anarquia aeronáutica custa ao país dinheiro e vidas.
No dia 17 de julho de 2007, no aeroporto de Congonhas, São Paulo, um avião da TAM se choca e explode após sair da pista e bater no prédio da TAM Express. O Airbus A-320 transportava mais de 170 pessoas e o número de vítimas ainda não pode ser dimensionado, pois os funcionários do prédio alvejado e os pedestres que na hora passavam pelo local também poderiam se somar à já dramática cifra de mortos.
31 de agosto de 1999, aeroporto Jorge Newbery, Buenos Aires. Um Boeing 737 da linha aérea Lapa sai da pista, se choca e explode num campo de golfe – 62 pessoas, entre passageiros, tripulação e pedestres perderam a vida no desastre.
O avião da TAM, após uma tentativa frustrada de descer, teria retomado a decolagem por causas ainda investigadas; o avião da Lapa tentava decolar quando chegou ao final da pista e seguiu reto, atropelando o cercado, pedestres e carros que trafegavam em uma importante autopista Argentina. Após a colisão, o avião da TAM pegou fogo perto de um posto de gasolina; no caso do avião argentino, o fogo começou ao explodir uma unidade reguladora de gás atropelada pela aeronave na sua descontrolada corrida fora da pista.
Ação e omissão
Até aqui, trata-se de um número limitado de coincidências entre os dois acidentes que cegaram a vida de pessoas comuns. Mas há um detalhe que merece uma análise mais exaustiva e diz respeito ao que foi feito na Argentina, que vivenciou um caos aéreo iniciado nos anos 90, caos que ainda não foi completamente resolvido. A anarquia aérea da aviação argentina é bem semelhante ao que ocorre hoje no Brasil.
A mídia argentina, muitas vezes taxada de alarmista para algumas coisas e omissa para outras, ficou em xeque ao presenciar como produtoras filmográficas independentes inovavam em investigação jornalística, conseguindo produzir filmes e documentários da realidade do país ainda mais surpreendentes que os de ficção. E, pontualmente, a temática do caos aéreo rendeu dois filmes que questionaram não somente a aparelhagem associada à aviação, como a qualificação das pessoas que trabalhavam na área e, especialmente, a ação e omissão do órgão supremo de controle aeronáutico, a Força Aérea Argentina. O primeiro foi um filme baseado em fatos reais, Whisky Romero Zulu (2005), no qual se descreve a fatalidade do vôo da empresa Lapa de 1999.
A responsabilidade cabível
Mas o golpe fatal chegou em 2006, com Fuerza Aérea Sociedad Anonima, um documentário no qual o comando da aviação em mãos militares foi seriamente questionado no que tange ao gerenciamento do setor aéreo-comercial. No documentário Fuerza Aérea Sociedad Anonima, o diretor e ex-piloto Enrique Piñeyro, ilustra com depoimentos, câmeras ocultas, maquetes e material jornalístico, o descaso de empresários do transporte aéreo e a cumplicidade de funcionários corruptos do órgão de controle militar.
Após o filme, como escreveu André Caramante no Observatório da Imprensa, ‘a ministra da Defesa do país, Nilda Garré, retirou o controle do tráfego aéreo da FAA (Fuerza Aérea Argentina) e o transferiu para o secretário do Transporte, Ricardo Jaime’ (ver aqui). Como bem parece, ante situações drásticas os hermanos tomaram decisões igualmente drásticas. Embora os empresários do transporte aéreo e funcionários insistissem em colocar a culpa nos pilotos mortos, nos pássaros suicidas que se jogavam contra as turbinas dos aviões ou em fatos mirabolantes da natureza. Ficou claro que a responsabilidade nas catástrofes não era somente dos comandantes e controladores argentinos. Os brigadeiros também foram questionados e expostos socialmente pela responsabilidade cabível nos controles omitidos na maioria dos desastres.
Reprodutora da voz oficial
O verdadeiro sucesso de Piñeyro foi mostrar aquilo que a mídia conhecia e calava, aquilo que o povo suspeitava: mostrar os protagonistas do caos e conclamá-los, com nome e sobrenome. No documentário, são citadas altas patentes militares que levavam uma vida ostentosa com salários que não eram compatíveis com seus ingressos declarados. Ao mesmo tempo, deixa em evidência que a aparelhagem tecnológica estava sucateada, sugere que as arrecadações por pousos e decolagens nos aeroportos, em lugar de ser investidas em segurança, tinham um destino mais obscuro.
Atualmente está sendo avaliado se, além da investigação no desastre aéreo de Congonhas do dia 17/07, que será feita pela Aeronáutica, haverá uma outra investigação da Polícia Federal.
Na Argentina, a Aeronáutica investigava, nos anos 90, e não descobria por que os aviões continuavam caindo. O interessante é que, após o documentário de Piñeyro e o questionamento da Força Aérea Argentina, os aviões deixaram de cair e pessoas deixaram de morrer aos montes. Será que a mídia brasileira ficará tão perplexa quanto ficou a mídia argentina quando outra instituição ocupou seu lugar e descobriu o que muitos suspeitavam? Será tão irracional pensar a mídia como pesquisadora em profundidade dos fatos, em lugar de mera reprodutora da voz dos órgãos oficiais? Será que a mídia esqueceu que tem uma função social que deveria ser mais forte que a função comercial? Que mídia é a que queremos? A que sempre chega depois dos fatos ou uma mídia que tenta prevê-los para minimizar os danos à sociedade?
******
Jornalista