Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Parem as máquinas: o ódio está insuportável

Nas rememorações do centenário do início da Grande Guerra – surpreendentemente copiosas e ricas – faltou recortar a monumental figura do jornalista e tribuno socialista e pacifista Jean Jaurès, assassinado no dia 31 de julho de 1914, três dias depois de formalmente declarada.

Foi a sua primeira vítima: não caiu no campo de batalha, mas no Café Croissant, no bairro parisiense de Montmartre, a pouca distância da redação do L’Humanité (A Humanidade, jornal que fundou e dirigia havia dez anos), enquanto comia uma torta de morangos com os seus companheiros antes de retornar à redação para fechar a edição do dia seguinte. O assassino, Raoul Villain (vilão, em francês), era um jovem nacionalista alsaciano, insano e desequilibrado, que enxergava na guerra a única saída para retomar da Alemanha a sua terra natal. Indignado com a pregação pacifista de Jaurès, alvejou-o com dois tiros. A justiça francesa inocentou o assassino em 1919 e ainda obrigou a viúva a pagar as custas do processo.

Jaurès junta o humanismo e o pacifismo. A oposição à guerra, qualquer que seja a guerra e quaisquer que sejam os beligerantes, só é válida quando condicionada a paradigmas humanistas mais amplos. E quando se fala em pacifismo não se pretende o modelo místico tipo “paz e amor”. O pacifismo tem racionalidade, tem lógica e uma retórica absolutamente incompatível com a retórica do ressentimento e da violência.

Jaurès nos remete ao Caso Dreyfus do qual foi um dos mais veementes defensores, não obstante as torpes acusações vindas da esquerda radical por tentar inocentar um militar judeu e burguês. Respondia invariavelmente: socialistas devem combater todas as injustiças – contra trabalhadores ou contra burgueses.

Espiral do rancor

Lutar contra as injustiças também é tarefa da imprensa – talvez prioritária – razão pela qual Jaurès encarna como poucos o trinômio pacifismo-humanismo-jornalismo.

A guerra que nos horroriza neste momento entre o Estado de Israel e o Hamas na Faixa de Gaza não tem justificativa. Deve ser repudiada com firmeza, integralmente, sem vacilação: é uma barbaridade que precisa ser prontamente interrompida. A questão não reside na desproporção da retaliação aos ataques contra o território israelense: toda guerra é essencialmente desproporcional, a morte é absurdamente desproporcional diante do que a vida pode oferecer. Pretender simetrias em meio à barbárie é uma forma cínica de aceitá-la. A barbárie é inaceitável. Sobretudo quando praticada ou consentida por aqueles que foram suas vítimas preferenciais durante séculos.

Este horror pode ser desativado e já o foi em outras ocasiões (ver “Da Capo: do início”). O que deve nos ocupar neste Observatório é a perigosa intoxicação que está ocorrendo nos meios de comunicação, sobretudo nos informais, a blogosfera. O ódio brutaliza indistintamente, iguala o que odeia ao odiado, e por isso é altamente contagioso. Em termos morais, tão incontrolável quanto o ebola.

Está visível em nossa mídia formal (ou tradicional) um esforço para equilibrar a cobertura do conflito de Gaza, mas é preciso reconhecer que a louvável intenção resulta inútil. A emoção causada pela foto da criança morta não pode ser equilibrada ou compensada por outra foto ou notícia. O distanciamento e a neutralidade são impossíveis. Também a omissão. Não se pode ignorar ou minimizar o que está acontecendo. Mas estimular o ressentimento e o rancor só alimentará a espiral que fabrica guerras – mesmo nos antípodas.

Pausa

Daí a nobreza da proposição jauresiana de combinar jornalismo com pacifismo, jornalismo com humanismo, humanismo com pacifismo. Fazer barulho ou provocar celeumas era um artifício empregado nas melhores estirpes jornalísticas. Por arrogância alguns poucos ainda o utilizam. Está em vias de extinção. O pluralismo deve liquidá-lo em definitivo. O leitor-cidadão hoje quer outra coisa, quer singularizar-se, ser melhor, aperfeiçoar-se. E nesta esfera as religiões fracassaram ao produzir inevitavelmente uma arma de destruição em massa que atende pelos nomes de fanatismo e fundamentalismo.

Stop the presses, parem as máquinas, a expressão do jargão americano lembra os tempos do jornalismo dito “romântico” quando o editor ou o publisher dispunha-se a interromper a rodagem de uma edição para dar um furo formidável. Muitas vezes para corrigir um erro. As máquinas já não param como antigamente. Muito menos os teclados. Mas conviria tentar.

Leia também

Por que viveu Jean Jaurès? – Francisco Assis

A Grande Guerra, as guerras – A.D.

Pacifismo ou é integral ou não é pacifismo – A.D.

As desproporções da guerra – A.D.

Onde a objetividade é impossível – Luciano Martins Costa