Ainda não se fez um exame detido da palavra ‘comunidade’, tal como hoje circula nos textos jornalísticos. No âmbito acadêmico, comunidade pertence a uma linhagem conceitual caracterizada por apelos ao congraçamento e a propostas coletivas, capaz de evocar, junto ao ativismo social, algo como um ‘espírito comum’ ou uma ‘comunidade global dos espíritos’, tal como fora preconizado por Stefan Zweig a propósito da unidade européia.
Na verdade, examina-se pouco essa palavra, à qual a modernidade liberal mais recente colou rótulos muito negativos, que variam da passada Volksgemeinschaft nazista até a atual djamaa dos fundamentalistas islâmicos.
Daí, a importância das reinterpretações operadas por pensadores contemporâneos, como o francês Jean-Luc Nancy e os italianos Gianni Vattimo, Roberto Esposito e Giorgio Aganbem. Corre nesta linha, aliás, a pesquisa em torno da ‘comunicação comunitária’ (vide O retorno da comunidade, Editora Mauad, livro recente organizado pela professora Raquel Paiva, da UFRJ), voltada para o esclarecimento conceitual do termo e para a crítica dos ‘neocomunitaristas’, que preconizam o estabelecimento de uma substância objetiva, uma plenitude humana, coletiva, capaz de ‘resistir’ ao niilismo ou à hipertrofia do individualismo contemporâneo.
‘Asfalto’ e a favela
Não se trata, realmente, de um conceito muito simples, como faz crer a mídia, ao ‘naturalizar’ a palavra em artigos e reportagens. Um exemplo é dado pelo artigo em que Bianor Scelza Cavalcanti, diretor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, comenta a crise da segurança pública no Rio de Janeiro, acentuada pela proliferação das milícias (O Globo, 2/3/2007). Afirmando que a milícia é mais problema do que solução, ele ressalva, entretanto, que ‘quem pretende formular e implementar política pública, deve viver com a comunidade seu contexto, sua história e cultura para direcionar o sentido e a intensidade das mudanças’.
No texto, ‘comunidade’ equivale a ‘favela’, e a milícia, apesar de seu ilegalismo, é conotada como uma experiência com a qual é necessário aprender, por se tratar de uma manifestação dos grupos sociais ‘que se reinventam para sobreviver’. Para o autor, ‘nosso sistema republicano federalista, bem ou mal, funciona, mas deve ser aperfeiçoado em suas instâncias. Há vazios de poder, nichos onde se nutrem carências de nossas comunidades urbanas pobres’.
Em linhas gerais, não há desacerto na argumentação do articulista, exceto na insistência em dar substância social a um conceito – o de comunidade – problemático para a sociologia, assim como para a maior parte do pensamento social contemporâneo. O problema pode ser posto nos seguintes termos: a diferença sócio-econômica entre o ‘asfalto’ (a sociedade caracterizada como cidadania plena) e a favela é suficiente para caracterizar esta última como uma entidade comunitária?
Milícias e poder público
Embora os dirigentes de associações de moradores, assim como alguns intelectuais orgânicos, se refiram às favelas como ‘comunidades’, nada nos assegura que a designação vá além de um nominalismo vazio. O termo ganha, entretanto, um curso cada vez mais livre nas declarações oficiais e nos textos jornalísticos.
Assim, ouve-se do prefeito carioca, numa reportagem sobre as milícias, que ‘não há relação entre os serviços públicos e eventuais grupos presentes nas comunidades’. Mas igualmente do repórter, que ‘o clima aparentemente mais tranqüilo da comunidade – em Rio das Pedras não há traficantes ostensivamente armados circulando pelas ruas – não compensa a atuação das milícias, formadas, geralmente, por ex-policiais que contariam com maior tolerância da polícia’ (Folha de S. Paulo, 25/2/2007).
Multiplicam-se os exemplos de proliferação do termo, com ambíguas conseqüências político-sociais. É o caso da proposta do chefe da milícia do complexo de Palmeirinha, no Rio, que reivindica uma parceria com o poder público para ‘melhorar a vida das comunidades’ onde atua:
‘Gostaríamos de trabalhar em conjunto com o governo. A parte difícil já fizemos, que é expulsar e dominar o tráfico, acabar com roubos, assaltos. Queremos auxílio para administrar as comunidades da forma que o governo determine.’
Para o líder da milícia, a proposta implica ainda a transformação das favelas em condomínios fechados, com guardas particulares uniformizados, regularização do furto do sinal de TV a cabo e venda monopolista de gás e carvão.
Precariedade social
É impossível deixar de perceber que o emprego da palavra comunidade é uma espécie de passaporte semântico para a passagem do pesadelo do tráfico de drogas à ditadura da autovigilância das milícias, ainda quando ocorre fora do contexto imediato da violência urbana. Assim, no citado artigo de Bianor Cavalcanti, pode-se ler:
‘Proponho que essas comunidades devam ter poder real e oficial para administrar seu cotidiano, com recursos próprios somados a transferências fiscais que se façam necessárias.’
Como se vê, as conseqüências da urbanização caótica e da omissão do Estado no controle das zonas periféricas ao território privilegiado pelo capital terminam apontando a diminuição da consciência republicana, em que parece surgir como novo ente de direito público a ‘comunidade de grande porte’.
É dever jornalístico começar a esclarecer o quanto antes que precariedade social e ausência de leis orgânicas não podem ser confundidas com o conceito avançado de comunidade.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro