Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pautados pelos ventos

As ações-relâmpago deflagradas pelo PCC contra a população paulistana, com ramificações em cidades do interior paulista, mobilizaram os holofotes novidadeiros da mídia para a tragédia, na qual morreram criminosos, policiais e inocentes. Como sempre, a mídia, em especial a televisiva, concentrou o foco na ponta do iceberg, nas estatísticas ascendentes da tragédia, na informação tópica e sensacionalista. Sintoma dessa ênfase foi o deslocamento de William Bonner para São Paulo, no ápice dos acontecimentos, de onde ancorou o Jornal Nacional.

É inegável a gravidade dos fatos. São Paulo, a locomotiva do Brasil, parou. Transformou-se numa cidade sitiada, à mercê do crime organizado. É uma tragédia de conseqüências imprevisíveis, pois ficou cristalina a fragilidade da estrutura da segurança pública em uma das megalópoles do planeta. Tragédia, sem dúvida. Mas uma tragédia anunciada.

Desde que foi criado em 1993, como resposta ao massacre do Carandiru, no qual 111 detentos foram assassinados, o ‘Partido do Crime’, como também é chamado o PCC, esteve à frente de várias rebeliões em presídios paulistas e outras manobras criminosas que incluem roubos de banco, assassinatos etc. Inicialmente ignorada pelas autoridades, a facção criminosa foi ganhando impulso e se expandindo pelos presídios paulistas. E, o que é pior, conquistando adeptos para a irmandade inclusive fora do estado de São Paulo.

À época, o trabalho de repórteres como Josmar Jozino, que escreveu o livro fundamental Cobras e lagartos sobre a gênese do PCC, mostrou de forma pioneira que algo de muito grave estava sendo gestado nos presídios de São Paulo. O ovo da serpente estava se rompendo aos poucos, sob as barbas das autoridades prisionais, que negavam que estivesse em curso uma ação organizada de criminosos. O PCC não somente cresceu, com o beneplácito de advogados chicaneiros, policiais corruptos, agentes penitenciários, carcereiros, médicos e dentistas que visitavam os presos, e, sobretudo, com a ajuda de suas companheiras, as ‘primeiras damas’ do crime. Virou um negócio rentável, como qualquer outro, uma máquina de fazer dinheiro, nos moldes de qualquer empresa lucrativa.

E os criminosos, desde aqueles primórdios, já podiam contar com uma arma poderosa que não cospe fogo, mas que funciona como uma ferramenta estratégica para os seus negócios: o celular. Hoje causa espanto na opinião pública que mesmo em presídios de segurança máxima de São Paulo essa engenhoca seja utilizada ao bel-prazer dos criminosos. Mas sempre foi assim. Centenas desses aparelhinhos chegaram aos presídios escondidos nas genitálias das companheiras dos presos. O PCC já dispunha, naquela época, de centrais telefônicas espalhadas em pontos estratégicos da capital paulista, permitindo conversações simultâneas com até quatro integrantes da facção. Uma regalia inimaginável, porém real.

Distância

No momento da sua constituição, o ‘Partido do Crime’ começou a ser conduzido por alguns nomes principais – dentre eles Marcos Willians Herbas Camacho, vulgo Marcola. Soa familiar? Hoje o nome de Marcola está em todas as notícias sobre os ataques do PCC, mas ele já aparecia nessa fita há muito tempo. Só que agora a mídia não perdeu a oportunidade de mais uma vez romantizar um criminoso, ao destacar os dotes intelectuais do principal líder do PCC, suposto leitor de Dante Alighieri. Noutros tempos, o herói da vez respondia pelo nome de Lúcio Flávio, que chegou a ser imortalizado no filme Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. E houve outros personagens famosos em grau menor, como Marcinho VP, de Abusado, o festejado livro de Caco Barcellos.

Tampouco a resposta violenta do PCC à transferência de alguns dos seus líderes se constitui numa novidade. Rebeliões e motins ocasionados por essas mudanças sempre ocorreram, a exemplo da megarrebelião do Carandiru, em fevereiro de 2001.

Portanto, todo esse imbróglio que a mídia reporta hoje com sabor de novidade, como ocorrência atemporal, separada de sua explicação histórica, já está em andamento há muito tempo. Com a diferença de que essa realidade, que se afigura como mais restrita a áreas periféricas de São Paulo, onde gente morre como mosca nas madrugadas silenciosas, impôs seu toque de recolher também a áreas nobres como Higienópolis e Jardins.

Sabe-se muito bem que a violência vitima em maior número os mais pobres, os negros, o lúmpen na escala social. E desses grupos sem qualquer privilégio a grande imprensa guarda sensível distância. Afinal, não rendem uma boa notícia. Resta a voz dos seus próprios representantes para orquestrar a denúncia da desigualdade, caso dos rappers ou de autores como Ferréz, que expôs em Capão Pecado a vida em periferias barra-pesada como Capão Redondo.

Um mérito

A crise fez erguer uma polifonia de vozes que tentaram explicar a violência ou apontar-lhe soluções, e coube aos jornais impressos explorá-la. A entrevista que o governador Cláudio Lembo concedeu à repórter Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo (18/5), repercutiu de forma imediata. Mas não deixa de ser sintomático que platitudes sociológicas, como atribuir os déficits sociais ao egoísmo da elite, tenham feito tanto sucesso. Tais críticas, no fim das contas, sempre foram formuladas pela sociologia tupiniquim. Igualmente relevante – porém, menos discutida – foi a entrevista que Bob Fernandes fez com o economista Márcio Pochmann para a Terra Magazine (18/5). Nela, o ex-secretário da prefeitura de São Paulo na gestão Marta Suplicy deu forma ao desabafo de Cláudio Lembo. Pochmann mostrou que, de 10 brasileiros ricos, seis estão em São Paulo. E de cada 10 empregos criados no estado, 9 pagam até dois salários mínimos.

Dias antes, a Folha abria o debate ao divulgar entrevista com a antropóloga Alba Zaluar (15/5). Nela, a estudiosa da violência urbana chamou a atenção para uma maior centralização do crime organizado e sua politização. Por suas próprias características, os impressos procuraram cumprir o que deles se esperava: fornecer ao leitor informação mais detalhada sobre a violência em São Paulo, considerando seus diversos ângulos. Mesmo O Globo não fez feio, ao tentar entender o que se passava no estado vizinho.

Mas os jornalões, como de resto toda a sociedade, foram pautados pelos ventos sazonais da criminalidade. Se mérito houve nesses acontecimentos tão graves foi o de trazer de volta à agenda da mídia esse tema crucial para o Brasil. O problema é que o interesse arrefecerá até que venha uma nova manifestação do PCC. E aí todos voltarão a falar do assunto, cobrindo como novidade (leia-se farsa) o que já vem acontecendo há muito tempo como tragédia.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias