Esta semana, em sua coluna da Folha, o jornalista Janio de Freitas tocou num assunto que há muito estava agendado na minha pauta de prioridades.
A ditadura brasileira e Jimmy Carter.
Janio falou especificamente do sentimento manifesto de ódio do ex-presidente Ernesto Geisel, e eu estendo essa sensibilidade a todos os integrantes do governo. Para mim o governo de exceção começou a cair na noite em que foi anunciada a vitória do plantador de amendoins da Geórgia.
Havia em todo o Brasil oficial um desejo, um enorme desejo de que Ford fosse o eleito. Ele era mais burro, mais belicista e não dava a mínima para os direitos humanos. ‘Wishfull thinking’.
A mídia chapa-branca, então, nem é preciso dizer o que pensava, basta procurar nos arquivos. Os editoriais dos ‘jornalões’ exprimiam claramente o pensamento dos conservadores ante a perspectiva de uma vitória democrata. Repúdio total, quase nojo.
Estamos mais de um quarto de século à frente dos dias duros em que Vlado Herzog e Manoel Fiel Filho foram mortos nos porões do regime. Mortos pelos mesmos tipos sinistros que quase explodiram o Riocentro e em seguida foram chamados de radicais, porém sinceros, pelo ex-presidente João Figueiredo.
Hoje todos se dizem adeptos da democracia desde criancinhas, porém em 1977 muitos dos que aí estão agarravam-se ao osso do autoritarismo, desejando que nunca acabasse.
Pior sem ela
Lembro-me bem daquela noite, aliás, jamais esquecerei. Tínhamos poucas opções de informação fora os jornais e o rádio. A televisão era uma espécie de diário oficial eletrônico e não escondia o apreço pelo candidato Gerald Ford.
Para mim foi um dia diferente, era como se fosse uma final de Copa do Mundo. Eu nada conseguia fazer, queria saber como estavam as apurações. Os jornais da televisão torciam os fatos como que acreditando que poderiam interferir nos acontecimentos.
Isso viria a acontecer novamente na eleição de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e na campanha das Diretas Já. Esperei o dia inteiro.
Eu só soube da vitória de Carter tarde da noite. Assistindo ao último jornal da televisão, pensei estar vendo o anúncio de um enterro. Festejei muito. Apesar do desejo de parte da mídia e dos donos do poder, a ditadura brasileira entrava na fase final.
Em Brasília, tenho certeza, Geisel partilhava da minha opinião, deve ter tido uma péssima noite. Foi uma agonia longa a do regime de 64. A ditadura dos militares demorou a alcançar o poder, teve os primeiros esboços no tenentismo de 22 e só vingou em 1964, depois de alguns fracassos.
A partir da eleição de Carter, ainda se manteve capengando por oito anos, para só então entregar a rapadura. Pouco depois da eleição do presidente americano, tivemos a anistia, a volta dos exilados e o começo da abertura. Foi a época da distensão lenta e gradual. Quando Reagan derrotou Carter, em 1981, houve um princípio de retrocesso, a linha-dura agiu na calada da noite. A sociedade reagiu. Foi quando aconteceu o episódio do Riocentro. Porém, as bases do autoritarismo estavam minadas, a sociedade já havia se organizado além do ponto de não-retorno. Sem condições de resistir, finalmente caiu a ditadura. O que aconteceu depois é assunto para mais de metro, porém ninguém me tira da cabeça que quando o locutor da televisão anunciou, quase chorando, a vitória de Carter, a ditadura estava irremediavelmente condenada. Só restava festejar. Eu viveria numa democracia novamente. Ruim com ela, pior sem ela.