No domingo (28/3), o ‘Segundo Caderno’ de O Globo trouxe uma seção de heresias hilariantes. Ou seriam apostasias cômicas? A ver. Na contracapa do caderno, sob o título de ‘Entrando pelo Vaticano’, na seção de humor assinada pelo fictício ‘Agamenon Mendes Pedreira’, lá estavam, enfileiradas, piadas impiedosas contra as autoridades eclesiásticas. Ao menos a meu juízo, eram engraçadas.
Também a meu juízo, eram de gosto um tanto duvidoso. De qualquer maneira, não interessa, aqui, saber se elas são ou não são de mau gosto – o que é impossível definir, uma vez que se trata de uma questão, como já se disse, de gosto. Também não interessa a discussão sobre a ‘qualidade’ dessa escola de humorismo. Não importa saber se a sátira, nesse caso, ‘funciona’ ou não funciona. Comigo funcionou. Mas terá funcionado igualmente para todos? Será que o leitor médio do jornal gargalhou ou ficou chocado, tomado por alguma faísca de ira santa? Será difícil saber.
O que interessa, e só por isso toco no assunto, é registrar que uma barreira histórica desmoronou. Há poucos anos, seria impensável que um grande diário publicasse enxovalhos tão corrosivos contra bispos, cardeais e o próprio papa. O jornal pensaria duas, três, oitenta vezes – e depois teria medo de ofender seu leitorado. Teria medo de perdê-lo. Agora, esse medo já não se coloca – e é aí que a barreira caiu.
O noticiário vasto e demolidor sobre crimes sexuais cometidos por sacerdotes – e também sobre as tentativas de abafar esses abusos – já cuidou de nocautear o leitorado mais apegado às tradições católicas e, por isso mesmo, já tratou de legitimar o humorismo. As batinas agora se prestam à galhofa das publicações do mainstream. Já estão bastante indignados com os fatos, os leitores não vão perder tempo com os piadistas. Sabem bem que a falta de respeito não foi inventada pelos humoristas, mas começou pela conduta dos próprios religiosos, tanto os que abusaram de crianças como os que os acobertaram.
No meio disso, a coluna do popular Agamenon serve de sinal dos tempos. Cito um trecho:
‘Consternado diante de tantos escândalos sexuais, o Papa Bento XVI centímetros foi até a sacada do Vaticano e perguntou à multidão de fiéis na Praça São Pedro: `Tem culpa, eu?´. Vários sacristãos se ofereceram em sacrifício. Enciumados, os padres brasileiros não quiseram ficar atrás (mas depois trocaram). O Bispo de Arapiroca, quer dizer, Arapiraca, colocou na Internet um vídeo onde faz sexo com menores.’
É mole?
É tudo campanha da imprensa?
Comecei este artigo dizendo que a seção de O Globo trazia heresias hilariantes – ou mesmo apostasias cômicas. Não creio que tenha sido uma qualificação bem posta. Somente a Santa Sé pode definir o que é uma conduta herética, e, como bem sabe o leitor, eu não a represento. Quanto ao que é cômico ou hilário, isso depende. Não da Santa Sé. Isso depende mais de você do que de mim. Assim, não tento mais qualificar nada disso. Apenas sei que, há bem pouco tempo, essas palavras passariam por heréticas, isso passariam. Seus autores teriam que ajoelhar no milho. Suas posses seriam confiscadas. Confessariam pactos com o demônio na roda da tortura. Hoje, entretanto, a santidade dos que representam Deus na Terra está em xeque. E o pessoal morre de rir. Sinal dos tempos, sem dúvida.
Não nos ocupemos então de analisar o pesadelo do Vaticano. Não especulemos se toda a sua imensa fortuna irá se desfazer em indenizações a dezenas de milhares de seres humanos seviciados em sacristias ou casas paroquiais. A revista Veja desta semana (nº 2158, de 31/3/2010) conta que, só nos Estados Unidos, a igreja católica desembolsou mais de 2,5 bilhões de dólares em indenizações e custas processuais. Deixemos isso para lá. Ocupemo-nos um pouco mais do humor que agora fervilha nos jornais.
O humor – na TV, na internet, nos meios impressos – é um termômetro bastante confiável das inclinações do público. Se bem observado, se bem lido, equivale a uma boa pesquisa de opinião. Ninguém caçoa tão desbragadamente de figuras sacrossantas ou impolutas. Caçoa-se a boca pequena, é verdade, mas não assim, aos quatro ventos, a todos os sinos. Os jornais mais tradicionais muito menos caçoam, exatamente porque se arriscariam a perder a platéia. Mas hoje qualquer um faz piada do papa, sem pedir licença para bispo algum. É assim que o crescimento das piadas sobre o Vaticano aponta uma tendência. Uma tendência inequívoca: a igreja e o papa enfrentam uma onda de desmoralização.
Eis então que, como sempre acontece nesse tipo de desgaste a céu aberto, surgem as tentativas de pôr a culpa de tudo na imprensa. A reação é tímida, não é raivosa, mas ela tenta insistir na velha tecla: é tudo uma campanha da ‘mídia’. O curioso, agora, é que mesmo os prelados que acusam a imprensa de campanha anticatólica reconhecem que a crise de fato é tenebrosa, que um pedaço do inferno aparece nesse dilúvio de fogo e metal pesado que desaba na Praça São Pedro.
Há poucos dias, o portal G1 publicou uma nota da France Presse:
‘Os bispos da França expressaram nesta sexta-feira (26) vergonha e pesar ante os atos abomináveis de pedofilia dentro da Igreja Católica, em carta dirigida ao Papa Bento XVI, ao término de sua assembleia geral realizada em Lourdes (sudoeste).
‘`Todos sentimos vergonha e pesar ante os atos abomináveis cometidos por alguns padres e religiosos´, afirmam os bispos franceses, que, na mesma carta, defenderam o papa contra os ataques que sofreu neste caso.
‘`Constatamos também que estes fatos inadmissíveis são utilizados em uma campanha para atacar o senhor e sua missão à serviço da Igreja.´’
Campanha? Parece que, desta vez, a alegação não colou.
Ouço agora, enquanto escrevo, no Jornal da Band (terça à noite, 30/3), que a Alemanha inaugurou uma espécie de ‘disque pedofilia’ para recolher denúncias dos fiéis. Se é só uma campanha, para que abrir linhas telefônicas para os prejudicados reclamarem?
Pecadores que têm medo do povo
Usei os termos demofobia e fotofobia no título deste artigo, mas já estou arrependido. Penitencio-me. Este texto já está comprido demais e agora terei de alongá-lo ainda um tanto só para explicar o que é que eu quis dizer com o tal do título.
Por demofobia eu pretendia designar, menos que o medo de multidões, o medo dos olhos do povo. Por isso escrevi também fotofobia. Medo da luz. Medo da luz que esclareça o povo. Medo da luz nas câmaras do clero. Assim, quando batuquei aquele título ali em cima eu tinha na cabeça essa idéia, a de que a pedofilia é amparada e abrigada pelo medo que seus praticantes sentem do povo. Mais que medo, eles concentram uma força que repele o povo, que o rebaixa, que não vê na consciência dos cidadãos reunidos em público uma instância capaz de julgar. Sim, eles têm medo da luz. O trâmite ultra-secreto dos julgamentos internos que a igreja promove não nos deixa, a nós do povo, uma única pista, nenhuma informação sobre crimes praticados contra muitos de nós. A gente não sabe quase nada. E, do pouco que sabemos, quanto mais não há?
Quem tem medo dos olhos do povo também tem medo da imprensa. E diz que a imprensa apenas vocaliza campanhas sórdidas. Francamente, sou obrigado a admitir, está para surgir uma instituição mais permeada de pecados do que a própria imprensa. Ela peca por despreparo, muitas vezes. Peca por histeria programada também. Ela persegue inocentes e faz a apologia dos linchamentos morais. Atropela, desrespeita, avilta, insulta. Mas, em meio a tanta escuridão, em meio a tanta violência contra gente pequenina, desprotegida, frágil, ela, a imprensa, com sua voz estridente e por vezes tresloucada, é uma lamparina a nos guiar pelos porões. Que não seja para nos apresentá-los em detalhes, mas pelo menos para nos mostrar a rota de fuga.
Todos nós, pecadores miseráveis, que já abaixamos a cabeça e dissemos ‘amém’ às pregações de um homem de batina, todos nós temos o direito de saber. Bendita seja a imprensa. Mesmo quando caçoa.
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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo