Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pedras para Sakineh Ashtiani





Condenada a morrer por apedrejamento, a iraniana Sakineh Ashtiani comove o mundo. Acusada de adultério em duas ocasiões e de participação no assassinato de seu companheiro, Sakineh luta para reverter a sentença. Em 2006, após confessar ter mantido um relacionamento ilícito quando já era viúva, a iraniana recebeu 99 chibatadas. O processo contra ela foi reaberto quando as investigações sobre a morte de seu marido apontaram que Sakineh teria cometido adultério ainda durante o casamento. Os filhos e o advogado de Sakineh,

que movem uma campanha internacional para a revisão da sentença, alegam que há falhas no processo e que a confissão teria sido forçada.

A punição imposta a Sakineh não é rara em países de maioria muçulmana. No Irã, outras 25 pessoas aguardam a morte por apedrejamento, de acordo com uma organização não-governamental que luta contra este tipo de execução. A morte por lapidação, prevista na lei islâmica, a sharia, pode ser aplicada em casos de adultério praticados por homens ou mulheres e em casos de homossexualismo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que mantém relações cordiais com o presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad, ofereceu asilo à iraniana, mas o presidente iraniano não aceitou a proposta. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (24/8) discutiu a repercussão da condenação de Sakineh no Brasil e no mundo.


Antes do debate no estúdio, na coluna ‘A Mídia na Semana’, Alberto Dines comentou a conflituosa relação entre governo e imprensa em dois países vizinhos, a Venezuela e a Argentina; a passeata realizada por humoristas domingo (22/08), no Rio de Janeiro, em protesto contra as restrições ao humor previstas na legislação eleitoral para o rádio e a televisão; e a intenção da Associação Nacional de Jornais (ANJ) de criar o projeto de um conselho de autorregulamentação, anunciada durante o 8º Congresso Brasileiro de Jornais.


Mídia menos vibrante


Em editorial, Dines relembrou outros julgamentos que atraíram a opinião pública mundial e ressaltou que o caso de Sakineh tem ligações com uma causa política porque expõe na imprensa ‘aberrações’ cometidas em nome da fé. ‘A mídia hoje é mais forte e também mais fraca porque não consegue dedicar à massa de fatos a mesma intensidade e a mesma vibração que antes usava quando a sua pauta era mais restrita’, avaliou.


Para discutir esta questão, Alberto Dines recebeu no estúdio de São Paulo o filósofo Roberto Romano e o jornalista Roberto Lameirinhas. Professor Titular da Unicamp na área de Ética e Filosofia Política, Romano escreveu diversos livros e artigos sobre Ética e Teoria do Estado, publicados no Brasil e no exterior. Lameirinhas é editor de Internacional de O Estado de S.Paulo. Nos últimos anos, cobriu processos eleitorais e políticos em vários países e quase todos os da América Latina. No Rio de Janeiro, o convidado foi Eugênio José Guilherme de Aragão, subprocurador-geral da República. Doutor em Direito pela Ruhr-Universität de Bochum, na Alemanha, é professor adjunto da Universidade de Brasília.


A reportagem produzida pelo programa entrevistou Sami Armed Isbelle, representante da Sociedade Beneficente Muçulmana (SBM). Sami explicou que a estrutura familiar é um dos valores mais importantes das sociedades de maioria muçulmana. As leis que protegem a família são para coibir qualquer desestruturação desta instituição e, assim, assegurar uma sociedade sadia. As leis, de acordo com Sami, contribuem para evitar o sexo fora do casamento e o adultério. Ao contrário do que é propagado no Ocidente, no Islã o casamento é consensual e tanto o homem quanto a mulher podem pedir o divórcio e casar novamente. Sami também destacou que não há exposição a conteúdo visual erótico e as pessoas vestem-se de forma mais recatada.


‘A imprensa brasileira está reproduzindo o que está vindo de fora, através das agências de notícias que mandam informações para o mundo inteiro. Na verdade, o que ela poderia fazer seria justamente estar checando estas informações’, criticou. Sami avalia que a mídia no Brasil está dando voz a apenas um lado da questão e não busca ouvir fontes que tenham representatividade no mundo islâmico para mostrar a sua versão dos fatos.


Preconceito arraigado


Roseli Fischmann, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), criticou a estereotipização do mundo muçulmano e disse que a associação entre terrorismo e islamismo é uma brutalidade. ‘A relação da mídia com o mundo islâmico é sempre bastante complexa e me parece que não é só no Brasil. Ao contrário, eu acho que no Brasil tem havido até uma abertura um pouco maior nos últimos vinte anos, nos últimos dez em particular, mas ainda existe muita dificuldade. No campo internacional, eu acho que o mundo islâmico tem sido bastante brutalizado porque o islã não se reduz a esta situação que é específica do Irã’, disse.


Para Roseli, o caso de Sakineh mostra com clareza que é cada vez mais relevante que o Estado moderno seja laico. ‘O Estado precisa garantir a liberdade de crença e de consciência de todos – dos que crêem e dos que não crêem – mas ao mesmo tempo ele precisa garantir estas opções individuais que surgem para que os direitos individuais sejam respeitados para todos e todas’, argumentou.


Rose Marie Muraro, escritora e defensora dos direitos da mulher, comentou que a questão do apedrejamento de mulheres acusadas de adultério é milenar. ‘Já no Evangelho, Jesus Cristo dizia para os que estavam apedrejando a adúltera: ‘Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra’ e foi todo mundo embora. E até hoje elas são apedrejadas’, lembrou. Rose Marie classificou a questão das mulheres na atualidade como ‘impensável’. Na Índia, por exemplo, mães colocam grãos de veneno no bico do seio para que, ao mamar, as filhas não sobrevivam e, assim, não sofram maus tratos por parte dos futuros maridos.


Direitos básicos


No debate no estúdio, Dines comentou que o caso de Sakineh envolve questões como direitos humanos, democracia, Estado teocrático e comunicação. O filósofo Roberto Romano disse que o melhor enfoque para o caso neste momento é o do valor absoluto da individualidade e da proteção que a sociedade e o Estado precisam dar a esta individualidade. ‘Eu tenho visto comentários de colegas seus da imprensa, tenho visto cartas de leitores em grande quantidade falando que não existem direitos absolutos. Existem sim. O primeiro direito absoluto é o da vida. O direito que decorre daí é o direito da vida digna, da vida incólume, no corpo e na alma’, assegurou.


Roberto Lameirinhas disse que o processo jornalístico tem abolido a dependência das agências estrangeiras como única fonte de informação, principalmente em assuntos de política internacional. Esta tem sido uma grande luta da imprensa brasileira, mas em algumas situações não há como evitar, como no caso da Sakineh. Para vencer as barreiras impostas pelo regime iraniano, sites e blogs também estão sendo usados na cobertura. ‘No que diz respeito ao envolvimento do Itamaraty e do governo brasileiro especificamente, conseguimos romper esta dependência e fizemos apurações próprias’, disse.


Eugênio Aragão explicou que o Brasil adota o princípio da não-intervenção em assuntos internos. Aceita claramente a atuação das organizações internacionais na agenda de direitos humanos, mas tem sido refratário à ingerência de um Estado em outro Estado. Em outros cenários de graves violações dos direitos humanos, como em Cuba, o governo brasileiro evita adotar uma postura agressiva. ‘Nós não costumamos aceitar críticas, por exemplo, do governo americano, nos seus relatórios anuais sobre a situação de direitos humanos no Brasil. Nós aceitamos, porém, a ação das Nações Unidas. O Brasil admite que a questão de direitos humanos seja uma agenda tratada multilateralmente, mas tem fortes resistências ao tratamento bilateral’, afirmou.


Opinião pública anestesiada


Para Roberto Romano, em termos de ‘razão de Estado’, é compreensível a adoção de políticas e de alianças; no entanto, as outras esferas da sociedade não estão se mobilizando e refletindo o suficiente. ‘O que está ocorrendo com a imprensa, a opinião pública, que perdeu ou está perdendo muito fortemente a capacidade de indignação? Se você não tem esta capacidade de indignação, que é um elemento ético fundamental, efetivamente você tem o processo da barbárie tecnológica funcionando rapidamente’, disse. Em um mundo pautado pela velocidade, dramas como os constantes massacres que ocorrem no continente africano são deixados para trás.


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Pena de morte para Sakineh


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 560, exibido em 24/8/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


O julgamento da iraniana Sakineh Ashtiani não é o primeiro que empolga a opinião pública mundial. Pode-se dizer que a era moderna começou no fim do século 19 com o julgamento do capitão francês Alfred Dreyfus, que repercutiu nos quatro cantos do mundo, inclusive no Brasil, com implicações políticas que se estenderam ao início da Segunda Guerra Mundial.


Nos anos 1920, o julgamento dos anarquistas italianos Sacco e Vanzetti, afinal condenados à morte na cadeira elétrica nos Estados Unidos, agravou a radicalização política. Na segunda-feira, 23 de agosto, completaram-se 83 anos do clamoroso erro judicial.


O caso de Sakineh Ashtiani não tem ingredientes políticos – seria uma trágica história de amor ou desamor – mas associa-se à uma causa essencialmente política ao trazer para as primeiras páginas as aberrações cometidas pelos Estados teocráticos em nome de Deus e da fé.


Rui Barbosa indignou-se com a palhaçada judicial francesa que condenou Dreyfus, mas a Águia de Haia era naquele momento um exilado político, refugiado na Inglaterra, nada podia fazer. Desta vez houve gestões oficiais, mas tíbias e ambíguas. Deram em nada, aparentemente não convenceram o governo de Ahmadinejad a suspender a ameaça da execução por apedrejamento.


A mídia mundial acompanha o caso dentro dos padrões contemporâneos: a cobertura é intermitente, fragmentária, dispersiva. Nenhum veículo abraçou a causa de Sakineh como aconteceu com o francês L’Aurore, em 1898, onde uma carta aberta do escritor Emile Zola ao presidente da República francesa produziu a mais importante manchete de todos os tempos – ‘J’accuse’, ‘eu acuso’. A mídia hoje é mais forte e também mais fraca porque não consegue dedicar à massa de fatos a mesma intensidade e a mesma vibração que antes usava quando a sua pauta era mais restrita.


No momento em que a ONU lança um programa denominado ‘Aliança das Civilizações’ para contrapor-se à desastrosa teoria do choque de civilizações, o caso Sakineh escancara as diferenças, agrava os conflitos e evidencia a falta de escritores-jornalistas do porte de Emile Zola para denunciar as injustiças.


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A mídia na semana


** Dois vizinhos do Brasil, a Venezuela e a Argentina, estão novamente às turras com a imprensa. Hugo Chávez ficou arrepiado com as fotos de cadáveres empilhados num morgue de Caracas e proibiu o jornal El Nacional de publicar fotos que possam alterar o bem-estar psicológico de crianças e jovens. Censura deslavada. Na Argentina, o casal Kirchner não desiste de enquadrar os maiores jornais do país, La Nación e Clarín, que lhe fazem oposição. O governo agora quer tomar a fábrica de papel que fornece matéria prima para os jornais, sob o pretexto de que ela foi expropriada pelos militares e agora deve retornar aos antigos donos. Los hermanos ao norte e ao sul não conseguem mirar-se no exemplo brasileiro. Deveriam.


** Uma eleição sem graça. Mas este título não exprime a verdade porque todas as eleições são muito animadas. Sem eleições não há mudanças. A falta de graça vai por conta da lei que proíbe fazer humor com os candidatos. Indignados, e com toda a razão, os humoristas foram à rua para manifestar a sua indignação com o apoio entusiasmado dos seus leitores. Sem sátira não há política, sem caricaturas os políticos ficam insuportáveis.


** Pela primeira vez, desde a sua criação em 1981, a ANJ, Associação Nacional de Jornais, apresenta-se dividida perante a sociedade brasileira. A unanimidade que tanto a prejudicou nestes quase 30 anos, finalmente dissolveu-se. O pivô da divergência é o projeto da criação de um Conselho de Autorregulamentação da atividade jornalística. Os jornalistas que fazem parte da ANJ reprovaram a ideia, os empresários querem adotá-la logo para comprovar que a imprensa está atenta à qualidade da informação. A desinteligência é extremamente salutar, com uma ANJ do B, tudo ficará mais transparente.