Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pedro Dom, um dos nossos

A mídia, por seu campo e estrutura narrativa, ignora a ‘vida inteira que poderia ter sido e não foi’. Formato de divulgação de um evento, a notícia não comporta o poético que se insinua como ‘matéria quente’. Assim, não deixa de surpreender a maneira como o Jornal Nacional anunciou a morte do assaltante Pedro Machado Lomba Neto, o Pedro Dom. Jovem de classe média que, nos últimos seis meses, comandou uma onda de assaltos a residências na Zona Sul, Dom morreu na madrugada de quinta-feira (15/9), após trocar tiros com a polícia num prédio na Lagoa.

Com entonação adequada, William Bonner abriu o telejornal informando que ‘terminou hoje, no Rio, de forma violenta, a vida de mais um jovem brasileiro envolvido com drogas. Um rapaz que, segundo a família, teve todas as oportunidades de ser um cidadão de bem. Mas que, num determinado momento, escolheu o caminho do crime’. Registre-se que não há qualquer restrição à carga emotiva do relato. A vida, qualquer uma, merece apreço e sua interrupção abrupta deve ser descrita com solenidade e pesar. O que move este pequeno artigo não é o procedimento adotado, mas sua excepcionalidade. Por que não é extensivo a outros episódios semelhantes? Por que, contrariando antiga música de Chico Buarque, somente nesse caso ‘a dor da gente saiu no jornal’?

Segundo os teóricos do jornalismo, são quatro os fatores mais importantes numa notícia: novidade, proximidade, tamanho e importância. Talvez ao segundo, mais que aos outros, se deva o tratamento diferenciado da parte inicial da cobertura. Os demais aspectos foram subordinados à proximidade. Não a física, área de atuação do assaltante e local em que foi abatido, mas a social, aquela que é determinada por sua inserção de classe.

Pedro era um jovem de extração mediana, tinha a cidadania à mão, mas optou pela criminalidade. O que comove, como podemos depreender do trecho acima, é a tragédia de um transgressor de boa cepa. Alguém que nasceu em berço garantidor de uma vida de privilégios, mas abraçou o desvio. Sua desventura foi pertencer a um restrito grupo que, na sociedade brasileira, pode escolher. E o fez na rota inversa ao esperado. Apesar da brutalidade com que tratava as vítimas e do envolvimento com o tráfico, era ‘um dos nossos’.

A contrição inicial de Bonner é sintoma do condicionamento classista no discurso jornalístico. Um ingrediente a mais no que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de ‘dramaturgia do Jornal Nacional‘.

Regalias no réquiem

Segundo Luke Thomas Dowdney, pesquisador e coordenador do projeto Crianças e Jovens em Violência Armada e Organizada (Coav, sigla em inglês), estudos estimam que 50% das pessoas ligadas a organizações criminosas tenham menos de 18 anos. ‘O envolvimento pode começar muito cedo, aos 10 ou 11 anos de idade’. São, ao contrário de Dom, crianças que não têm nenhuma oportunidade de sonhar com vida digna e cidadania. Só conhecem o Poder Público quando ele entra atirando. Muitos são órfãos de balas perdidas e vêem, como único caminho de mobilidade social, o ingresso numa facção.

Os soldados do tráfico sonham com um generalato que lhes assegure o temor dos pares e o glamour da mídia. Se a vida é breve demais, que fique o registro de que foram menestréis na arte de matar e morrer. Se tiverem sorte, obterão lides e suítes. Se não der, uma breve nota, em página ímpar, será a única prova material de que existiram de fato. Nascerão quando morrerem, dependendo da boa vontade do editor e do talento de quem diagramar.

Devem estar atentos, entretanto, ao destino que lhes reservam os autores dos folhetins midiáticos. Por sua extração de origem, o assaltante de classe média teve regalias no réquiem editorial. Não faltou espaço discursivo a quem chorou sua perda. O pai de Pedro Dom, o policial aposentado Luiz Victor Lomba, acusou a polícia de extorquir dinheiro do filho e executá-lo. O chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, minimizou as afirmações, atribuindo-as ao ‘desespero de um pai que perdeu o filho’. Eis um exemplo de conjugação improvável; desdém e solidariedade corporativa.

Vinheta sem devir

Há três anos, Ernaldo Pinto de Medeiros, o , foi morto numa rebelião, em Bangu 1, liderada pelo rival Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Sua mãe, Georgina, chorando e quase aos gritos, disse que o filho ‘estava pagando o que fez e foi injustiçado’. O poder público não ouviu sua voz. A imprensa a tornou inaudível.

No Rio de Janeiro, 1.195 pessoas morreram em ‘atos de resistência’ somente no ano de 2003. No último decênio, o estado conta 39 mil desaparecidos. São números de uma enraizada lógica do extermínio. O uso da violência direta como forma de controle social é conhecido por 1,4 milhão de pessoas que habitam as 630 favelas da cidade. São dados que não incorporam o contingente de excluídos que moram fora da Região Metropolitana. Em 2004, o representante da Anistia Internacional para o Brasil, Tim Cahill, afirmou que, nos últimos oito anos, o número de mortes provocado por agentes de segurança aumentou 300%.

Para ser fidedigno, o jornalismo brasileiro teria que atuar no campo das probabilidades. Só assim, com ar formal e voz de tenor, William Bonner acertaria na mosca ao abrir o Jornal Nacional afirmando que ‘terminaram hoje, no Rio, de forma violenta, as vidas de dezenas de jovens envolvidos ou não com drogas. Pessoas que nunca tiveram a oportunidade de ser cidadãos de bem e que, num dado momento, obedeceram ao script esboçado pelo tecido social’. Que fique claro aos telespectadores que, por conivência ou omissão, vivemos uma realidade editada.

Não poderia ter sido. Não foi. E não será. Uma vinheta sem devir se avizinha.

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Professor-titular de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro