Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pela pauta de George W. Bush

A edição de O Globo de domingo (21/8) superou-SE em matéria de mediocridade e senso comum, que desembocam no velho reacionarismo da época da Guerra Fria. O alvo central, como sempre, tem sido o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que o governo Bush e colunistas como Merval Pereira e Miriam Leitão, entre outros, não perdoam. Pereira, ao fazer comparação entre as ‘semelhanças’ da crise política brasileira atual e a de 1954, que culminou com a tragédia do suicídio de Getúlio Vargas, detém-se em Perón e Chávez, a quem considera um ‘quase ditador’ (quase ditador é o mesmo tipo de conceito de quase virgem ou preconceito do gênero). Perón, segundo Pereira, ‘estava fazendo um acordo secreto com Vargas para formarem, com o Chile, uma aliança no Hemisfério Sul contra a influência dos Estados Unidos na região’. O fato, ainda segundo Pereira, foi confirmado posteriormente por ‘João Neves da Fontoura, um ex-ministro do Exterior’.

Ike não perdoou

Para entender melhor quem foi a figura histórica citada por Pereira: Fontoura foi ministro do Exterior do governo Eurico Dutra e, depois de apoiar a candidatura Vargas, acabou nomeado para o mesmo cargo por Vargas,. Ele ficou quase dois anos no referido ministério, mas acabou se aliando aos golpistas que contavam com a simpatia de Washington. Para se ter uma idéia do perfil do ministro citado por Pereira, vale lembrar que Fontoura defendia veementemente um alinhamento do Brasil com os EUA e queria a todo custo que Vargas enviasse tropas para lutar ao lado dos norte-americanos na Coréia. Depois de tudo isso, Fontoura virou colunista de O Globo, destilando conservadorismo por todos os poros. Não é à toa que Pereira desencavou esta figura exponencial do atraso.

Agora, complementa Pereira, ‘o quase ditador Chávez tenta trazer Lula para um acordo desse tipo’. Em seguida, o colunista cita como ‘o mais recente lance dessa aproximação o jantar com que Lula recepcionou Chávez na Granja do Torto’. Em seguida, tece outros juízos sobre o presidente venezuelano, que vêm sendo repetidos com certa constância pela direita estadunidense e latino-americana, e fala de ‘análise maniqueísta’ de Chávez sobre a crise política brasileira.

Na verdade, Pereira repete argumentos do receituário do Departamento de Estado norte-americano contra Chávez. E se retrocedermos na história, veremos que a mídia estadunidense em 1954 criticava Vargas exatamente pelo fato de ele tentar ‘uma política independente em relação a Washington’ e com ênfase numa tentativa de desenvolvimento autônomo. O então governo dos Estados Unidos, de Dwight Eisenhower (1890-1969) não perdoou Vargas por uma série de medidas nacionalistas e ainda pelo fato de o governo brasileiro ter se negado a enviar tropas à Guerra da Coréia.

A caravana da UNE

Uma aproximação de Vargas com governos latino-americanos que queriam eqüidistância das duas potências da época, que nem chegou a acontecer por causa da campanha golpista coordenada pela UDN (o ‘corvo da Rua do Lavradio’, Carlos Lacerda, e outros do gênero), seria algo absolutamente normal e não tinha nenhuma conotação ‘do mal’, como queria fazer crer o governo Eisenhower e atualmente o colunista Merval Pereira.

Em sua ‘análise comparativa’, Pereira esqueceu de um fato: O Globo, seja o jornal ou a rádio, participou ativamente da campanha golpista liderada pelo ‘corvo da Rua do Lavradio’ (alusão à Tribuna da Imprensa, de propriedade de Lacerda, cuja redação até hoje continua no mesmo endereço), contra o presidente Getúlio Vargas. Este, com seu gesto heróico, adiou o banquete da direita, que acabou acontecendo em 1º de abril de 1964, mais uma vez com o apoio de O Globo do democrata Roberto Marinho.

Tais fatos pertencem à história, que precisam ser relembrados de vez em quando, sobretudo em momentos em que analistas a serviço da direita fazem comparações mecânicas, deixando de contar parte dos acontecimentos que ajudam a entender melhor o Brasil de ontem e de hoje.

Ah, sim, na mesma edição (21/8), O Globo informa (entre aspas, entre aspas) que ‘um avião da FAB levou caravana da UNE à Venezuela’. Na abertura da matéria, a manchete de página: ‘Crise política: Chávez discursou na abertura do encontro e caravana levou também integrantes da CUT’ e ainda ‘Viagem durou mais de uma semana e estudantes voltaram no dia da manifestação de caras-pintadas a favor do governo’.

Coincidência ou não

O Globo só esqueceu do principal, ou seja, que a viagem ocorreu para que os jovens participassem ao 16º Festival Mundial da Juventude.

Ao melhor estilo udenista-moralista-lacerdista dos anos 1950, o ‘imparcial’ O Globo no fundo queria que os leitores concluíssem que teria sido um gasto inconseqüente e sem razão de ser, ou melhor, um gasto com mão e contramão (o governo cedeu o cargueiro da FAB para a delegação da UNE em troca da participação da entidade no ato público ‘em favor do governo’).

Claro, a indignação do Globo prende-se também ao fato de o jornal ter preferido ao longo de sua história que a FAB participasse de golpes de Estado, como em 1964, e/ou reprimisse o povo do que seguisse a Constituição. .

Por estas e muitas outras, não é à toa que dá para ficar com a pulga atrás da orelha em matéria de baterias voltadas contra o presidente da Venezuela por parte da mídia conservadora brasileira. Por coincidência ou não (fica a critério do leitor), vale sempre lembrar que tais matérias ou análises coincidem com o que andam vomitando contra Chávez a secretária de Estado Condoleezza Rice e Donald Rumsfeld, da Defesa, entre outros do governo George W. Bush.

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Jornalista, Rio de janeiro