Sempre que o tema da corrupção ganha destaque, como agora, na crise que envolve o presidente do Senado, José Sarney, Pero Vaz de Caminha volta ao banco dos réus, acusado por um crime que não cometeu. Só para citar um exemplo: na quinta-feira (23/7), num programa jornalístico de grande audiência da rádio CBN, de São Paulo, um renomado comentarista afirmou, com absoluta certeza, que a corrupção no Brasil começa com a chegada de Pedro Álvares Cabral às nossas praias, já que o escrivão da frota, na carta em que comunica o achamento da nova terra, pede ao rei de Portugal um emprego para o sobrinho.
O equívoco, repetido ao longo do tempo, virou bordão e é hoje dado como verdade incontestável. No entanto, basta um pequeno esforço de apuração para revelar a tremenda barriga que há por trás dessa história.
É difícil saber quem primeiro atribuiu a Pero Vaz de Caminha o tal pedido de emprego, mas não há dúvida de que a lenda serve para justificar a corrupção endêmica como doença hereditária, inextirpável do organismo nacional. Com a competência que lhe é habitual, o historiador Boris Fausto assim analisa essa linha de argumentação:
‘Uma percepção corrente aponta a eternidade da corrupção em nosso país, invocando as raízes da formação ibérica em que imperaram as relações sociopoliticas patrimonialistas e, portanto, a indistinção do patrimônio público e do privado. Uma decorrência dessa perspectiva é o fatalismo que tende a acompanhá-la. Se esse e outros problemas graves do país estão inscritos no seu DNA, as possibilidades de superá-los seriam remotas, na melhor das hipóteses’ (O Estado de S. Paulo 19/6/09, pg.2).
‘Vossa Alteza há de ser muito bem servida’
A semente da praga, jogada nessa terra onde em se plantando tudo dá, estaria no final da carta Caminha. Mas quais são, afinal, os termos do trecho tão invocado como prova da suposta maldição que nos acompanha desde 1500?
Com a palavra, o caluniado escriba:
‘E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo miúdo.’
Depois de concluir o relatório oficial solicita, em pós-escrito, o tão comentado favor pessoal:
‘E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza’ (Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500).
Banimento para a África
Para entender o significado do texto, vamos conhecer um pouco melhor seu autor. Pero Vaz de Caminha era filho de Vasco Fernandes Caminha, fidalgo e escrivão, que provavelmente o educou e encaminhou para o mesmo ofício. Supõe-se que tenha nascido na cidade do Porto por volta de 1450 – até hoje não foi localizado o assento de batismo. Em jovem, tomou parte nas lutas movidas pelo rei Afonso V contra Castela (1476-79). Ocupou cargos importantes na burocracia oficial e, em 1497, foi eleito vereador na Câmara do Porto. Nomeado escrivão da frota de Cabral, morreu em combate na Índia em dezembro de 1500, oito meses após deixar as praias de Pindorama, que pintara em cores tão vivas na missiva em que, segundo as más línguas, pedia emprego para um parente. A essa altura, a carta já chegara às mãos do Rei, levada por Gaspar de Lemos, comandante do navio que regressou a Portugal para levar a notícia da descoberta da nova terra.
Ao que parece, Pero Vaz estava preocupado com a família quando partiu de Portugal. Sua filha única, Isabel de Caminha, fizera mau casamento. O marido, um certo Jorge de Osório, indivíduo de maus costumes, fora preso por assalto à mão armada e condenado a degredo para a ilha de São Tomé, na África. Mesmo sendo genro de um alto funcionário do reino, o meliante fora apanhado nas malhas da lei. À época, vigiam em Portugal as Ordenações Afonsinas, de 1446, que haviam separado o direito canônico do direito temporal.
Os delitos sujeitos ao degredo variavam da sedução de moça virgem ou viúva honesta até a adulteração de moeda. Roubo, lesões corporais, má-fé em transações comerciais também podiam levar o acusado a uma estadia forçada no ultramar. Só a condenação às galés ou a pena capital eram penas mais pesadas que o banimento para a África e, mais tarde, para o Brasil, já sob as Ordenações Manuelinas (1521) e Ordenações Filipinas (1603).
Uma ‘fatalidade’ histórica
Dependendo da gravidade do crime, o degredo era perpétuo ou por tempo determinado. Uma vez transitada em julgado, a sentença não podia ser comutada, a não ser ‘por uma graça especial’ do rei. Ou seja, o monarca tinha poderes, previstos em lei, para conceder indulto aos apenados.
Não se conhece a duração do castigo imposto a Jorge de Osório, nem quanto tempo cumpriu na ilha de São Tomé, ou mesmo se Dom Manuel I atendeu ao pedido de Pero Vaz de Caminha. Supondo que sim, o rei não precisou recorrer aos atos secretos atualmente em voga, já que as normas vigentes o autorizavam a fazê-lo abertamente.
Assim, cai por terra a lenda do pedido de emprego na carta que anuncia o descobrimento do Brasil. Para conferir, basta lê-la com um pouco de atenção. Afirmar o contrário serve apenas como justificativa para os que acreditam que o país não tem jeito e que a corrupção é uma fatalidade histórica (herdada dos portugueses) que nos acompanhará pelo resto dos tempos.
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Jornalista e escritor