Todo poder emana do povo, não é? Numa democracia como a nossa, essa emanação
se dá de tempos em tempos, quando das eleições. Admite-se que alguém assuma o
cargo de presidente da República pela vontade expressa da maior parte –
não confundir com a maioria, algo que raramente acontece – dos eleitores
(o povo); estes, depois de, teoricamente, analisarem demorada e meticulosamente
os candidatos e suas propostas, e sobreviverem a tsunamis de propaganda
política, cumprem o dever cívico e exercem o direito de sufragar o nome de seu
preferido. Depois, confiam que o eleito dedique-se durante o tempo de seu(s)
mandato(s) a realizar, ou, ao menos tentar, o que foi proposto na campanha, e
que, misericórdia, nos deixe a nós, o povo, em paz por outros quatro anos.
Porém, como não querem nos poupar o sossego nesta vida, inventou-se de sentir
de tempos em tempos as emanações do povo através de pesquisas de uma tal de
opinião pública. O resultado das pesquisas, uma espécie de termômetro, fornece
um farto material para que a mídia produza especulações, passadologias e
futurologias diversas, que explicam direitinho para o distinto público como é,
e, en passant, como deveria ser sua opinião.
Nos dois últimos meses, como é de conhecimento de 84% dos brasileiros (vide
Nota 1, abaixo), descobriu-se uma vasta rede de corrupção, compra de votos,
lavagem de dinheiro, suborno, chantagens e outras safadezas como há muito não se
descobria [31% acham que a corrupção aumentou no governo Lula – os demais acham
que está do mesmo tamanho (45%) ou que diminuiu (17%!), e 6% não sabem, nem
ouviram falar e não querem se envolver].
O que se imaginava, antes das pesquisas, é que a maré marrom e malcheirosa já
tivesse impregnado o presidente, dadas as espirais de denúncias estentóreas a
espocar a cada meia-hora na TV. E isso num enredo que começou pra valer com o
deputado-cantor e chutador-mor-do-pau-da-barraca Roberto ‘Sou, mas quem não é?’
Jefferson e seus silêncios teatrais; num cenário onde assombra a calva sinistra
do Marcos Valério (que só falta depor de monóculo, acariciando um gato preto no
colo, feito aqueles vilões dos filmes do early James Bond); num
cast com nomes premonitórios como Jacinto Lamas, Márcia Milanésio, Genu
& Genoíno, Robson Pego e Delúbio do PT; em que não faltam perigosas
secretárias, reveladoras ex-mulheres, inconfidentes atuais mulheres e, quem
sabe, futuras mulheres ainda sem adjetivos…
Enfim, muitos já batiam os últimos pregos no caixão do governo Lula (vide
Nota 2).
Chama acesa
Qual não foi o espanto de quase todos (e alívio de alguns) quando
verificou-se que o percentual dos que acham o governo Lula ótimo ou
bom apenas oscilou levemente dentro da margem de erro (40% ou 51% de
aprovação, dependendo da pesquisa), e que 65% acham que o presidente tem pouca
ou nenhuma responsabilidade nesta farra de milhões a brotar de malas, malões,
valises e cuecas! E mais: caso a eleição fosse hoje (ontem), Lula seria
reeleito! Vai ser blindado assim lá longe…
A explicação não tardou a aparecer: o culpado por tamanha alienação do povo
era ele, o povão alienado! Como escreve Gilberto Dimenstein, num surto de
genialidade incontida:
‘Está cada vez mais claro que parte da popularidade do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva se sustenta nos baixos níveis de escolaridade e desinformação
[sic]. A última pesquisa do Datafolha, publicada nesta quinta-feira na Folha
de S.Paulo, é mais uma prova, ao mostrar que, na área social, o que mais
agrada aos cidadãos é o programa Fome Zero. Nem mais o governo alardeia esse
plano.’ (Folha Online, 28/7/2005).
Essa gentinha, que é o pessoal do panis et circenses, não entende
mesmo nada de política… e insiste em gostar do Lulinha-paz-e-amor.
Já para o mesmo povo, de acordo com as pesquisas, a culpa é dos políticos, a
culpa é do Congresso que não presta (para 46% dos entrevistados), a culpa é da
canalha a quem o PT realmente prodigalizava mensalões (segundo 67% dos
entrevistados) para manter acesa a chama da fidelidade(?) da base de apoio.
Pior, dois terços disseram ter ‘mais vergonha do que orgulho’ dos deputados
federais. Que fizemos nós? Que tipo de gente exerce o poder em nosso
nome?
‘Década perdida’
Todo poder emana do povo e em seu nome, será exercido. Já que não lhe
pespegam dolo nem culpa, e revigorado por números tão afetuosos, sai o nosso
presidente em andanças junto ao seu povo (olha ele aí, de novo),
inaugurando até expansão de fábrica de marmitas, repetindo para o ‘espelho,
espelho meu, existe no mundo alguém mais ético do que eu?’
Cita 3,2 milhões de novos empregos criados no seu governo, a inflação sob
controle, as exportações em alta, e coisa e tal. Só não faz mais por culpa de
uma tal de ‘elite’, que é uma espécie de não-povo, coisa-ruim, o torto, que
conspira dia sim, dia também, contra o progresso do país e contra a sua
mais-que-provável reeleição ano que vem – o que, para Mr. da Silva, dá no mesmo.
Elite: será o que antigamente se chamava de ‘classes dominantes’? Se for, são
um insignificante 1% da população, que detêm (e como detêm) uma renda igual à
soma das rendas de outros 50% menos abençoados pela riqueza, o chamado ‘povão’ –
ou ‘povinho’, conforme o palanque.
Ora, Excelência, essa elite quer qualquer coisa desde que não mude em nadica
de nada o modelito econômico do governo Lula, espécie de samba-de-uma-nota-só
criado pela turma do FHC, o Limpo, e entoado com cada vez mais vigor por Palocci
& Cia. (estes, sim, blindados pra valer), agora quase encorpada (sem
trocadilho) pelo Delfim ‘Czar’ Neto. Dê só uma espiada nos lucros dos bancos…
No meio dos dois povos, se debate e ‘se vira’ a turma da ex-classe média,
agora classificada como ‘pobre-alta’, pelos espíritos mais panglossianos. Essa
parte do povo já não vê mais nenhuma graça nos tropeços verbais do Lula; acha
que o presidente trabalha pouco (42%), é indeciso (40%), é pouco inteligente
(38%), cifras que vêm aumentando ao longo dos dois anos e meio do governo. Essa
parte do povo é a que mais sente a perda de poder aquisitivo (15% a 18%, nos
dois anos, dependendo da fonte), e a que mais se ressente de mais uma rasteira,
de mais uma ‘década perdida’. A reeleição não é coisa assim tão fácil.
Água no chope
Não quero perturbar este momento de popularidade estável do presidente, mas,
por dever de ofício, gostaria de chamar a atenção para dois pontos:
1.
Esse negócio de ficar comparando a aprovação/desaprovação dogoverno Lula com a de outros presidentes (ou dos prefeitos, ou dos governadores)
é uma bobagem imensa – para ser delicado. Não faz o menor sentido nem em termos
lógicos nem em termos estatísticos: é o próprio ‘alhos com bugalhos’. Dizer que
FHC, com um ano de governo, tinha tantos por cento de aprovação, mais do que o
Collor, porém menos do que o Sarney, um pouco mais que o Itamar e a metade do
Getúlio Vargas, um terço acima do Tomé de Sousa, um quarto abaixo do Washington
Luiz … que tal parar com isso e gastar tinta com coisas mais sérias, como, por
exemplo, uma matéria extensa sobre a coleção de bonés do presidente?
2.
É prudente conferir a série histórica do percentual dos queacham o governo Lula péssimo+ruim.
Fonte: Datafolha (23/7/2005). Nota: jun05* – 15/06/2005
Tirante os erros do gráfico, que reproduzimos como está no Datafolha (com as
datas das pesquisas fora de escala), o prezado leitor pode ver que a coisa não
está tão fácil para o presidente. Nos demais institutos, os números são
parecidos: Ibope, avaliação do governo, 24% de ruim+péssimo; Sensus, avaliação
do governo, 20% ruim+péssimo (todas elas ascendentes).
Para as avaliações do governo em bom+ótimo, Datafolha 35%, Ibope, 36% e
Sensus, 40%. As margens de erro em torno de 2% e as tendências das curvas
mostram que as extremidades da escala (desaprovação/aprovação) estão em
tendência de aproximação, o que não é nada bom para as pretensões do
candidatíssimo.
Para piorar um pouco mais a situação, ainda aparece o senador Eduardo
Suplicy, que ameaça…
‘…presentear o presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o livro A
Democracia na América, de Alexis de Tocqueville. Suplicy quer que Lula
reflita sobre as vantagens e desvantagens da reeleição, a partir das observações
do filósofo francês.’ (Folha Online, 28/7/2005).
Lula irá ler, sim, nobre senador. Embora lame duck, é candidatíssimo,
e estando em plena campanha, vai se debruçar sobre as pertinentes considerações
do filósofo enquanto põe as barbas de molho, pois, afinal, entramos em agosto,
um mês complicado na história política do Brasil, em situações muito parecidas
como as de hoje. E esta semana promete.
***
Nota 1: Para compilar estas estatísticas iniciais, imitando os jornalões,
fiz uma verdadeira salada com os números de três institutos, Datafolha, Sensus e
Ibope. Estes têm periodicidade, metodologia e amostragem diferentes, mas os
resultados são similares.
Nota 2: Um dos coveiros, o professor Luiz Carlos Bresser Pereira, 70,
surfa na onda e quebra todos os recordes de caradurismo em um artigo para a
Folha:
‘O governo Lula terminou. Foi um curto governo, que no seu breve período
frustrou esperanças e realizou pouco. As perspectivas de urna ‘volta por cima’
são mínimas e o melhor que podemos esperar é que termine formalmente daqui a 18
meses sem maiores traumas. (…) os governos anteriores tiveram de fazer
concessões aos parlamentares dos partidos aliados. Mas jamais da maneira como
ocorreu desta vez, por meio de uma mensalidade por fora. O que se fazia era
controlar as emendas dos parlamentares e reservar alguns cargos. O presidente
Fernando Henrique, por exemplo, jamais confundiu seu governo com o PSDB e em
nenhum momento sugeriu que seu tesoureiro operasse politicamente no governo. O
presidente mal via a lista de doadores, para os quais era deixado claro que a
doação não implicava nenhuma troca nem novas doações depois do pleito. (…) o
governo perdeu sua base social de sustentação e, com isso, perdeu legitimidade
política.’ (‘O curto governo Lula’, Folha de S.Paulo, 19/6/2005, pág.
A3).
Sem comentários.
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Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora