‘Se eu estivesse ocupando o cargo de editor e me apresentassem uma charge, ilustração ou texto que eu julgasse ofensiva a alguma religião, eu deixaria de publicá-los. No entanto, mesmo discordando, não condenaria outro editor, com diferente entendimento jornalístico, que optasse pela divulgação. Cada jornal tem (ou deveria ter) a medida para definir o que põe em suas páginas, relacionando motivos éticos, de ‘bom gosto’, de ‘sensibilidade’, de respeito aos costumes de seu público leitor, da dignidade alheia, etc.
Uma boa baliza sobre a liberdade de imprensa foi fincada na Primeira Emenda da Constituição americana, proibindo ao congresso votar leis de censura à imprensa: ‘O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos’. Pode-se fazer reparos ao texto de 1791, mas em qualquer debate sobre a liberdade de publicação, essas palavras têm de ser levadas em conta, pela força da influência que exerceram e exercem.
Exageros
Se se concorda que os desenhos publicados pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten (depois republicadas em vários jornais do mundo) são ofensivas aos muçulmanos, há também de que pôr de acordo para condenar reações transbordantes dos marcos democráticos – o protesto pacífico e o recurso à lei. Em se tratando de liberdade de imprensa, o que seria o mais deletério: suportar exageros e até a má-fé de alguns, ou impor regulamentação excessiva à palavra, ao talante dos grupos de pressão, quaisquer que sejam eles? Aos governos dos países democráticos não é dado o direito à censura, por que deveria ser aceitável partindo de facções religiosas ou quaisquer outras?
É forçoso reconhecer que setores muçulmanos fundamentalistas exercem ou pretendem exercer a censura onde quer que vejam possível ofensa à sua fé. Para isso, não necessitam de nenhuma lei, nem mesmo daquelas de exceção. Usam a força, a ameaça, a intimidação e o assassinato puro e simples, como no caso do jovem cineasta dinamarquês, Theo van Gogh, morto por um fanático, por ter dirigido o filme Submissão (2004), mostrando a violência contra as mulheres nos países islâmicos. Ou ainda a sentença de morte imposta ao escritor anglo-indiano Salman Rushdie, cuja obra, Os Versos Satânicos, foi considerada blasfema pelo então dirigente do Irã e principal líder religioso do país, o aiatolá Ruhollah Khomeini. Sob a exortação de Khomeini, ditando aos muçulmanos do mundo inteiro que era dever deles matar Rushdie e as pessoas envolvidas na publicação do livro, o escritor foi obrigado a se esconder por quase 10 anos, a partir de 1989. O decreto islâmico para o assassinato só foi cancelado depois da morte de Khomeini.
Limites
Alguns articulistas fazem diferença entre o livro de Rushdie, uma obra literária – por isso merecedora da publicação –, e as charges, que seriam grosseiras, servindo apenas ao propósito do insulto. O argumento – desde que se chegue a um acordo sobre o que é uma verdadeira obra de arte – até que não é ruim, mas parece que os radicais islâmicos não distinguem uma coisa da outra, pois condenaram os chargistas, o cineasta e o escritor. Outros ainda dizem que os jornais poderiam publicar os desenhos, mas não deveriam tê-lo feito. Pelo que escrevi acima, também não acho esse um mau argumento, mas de que vale um direito se eu não posso exercê-lo? Também há o recurso de dizer que a liberdade de imprensa deve ter limites. Certo. Mas quem vai pô-los e como? Deixaremos fundamentalistas de todos os matizes ditarem as regras?
Vejam o que animou o Jyllands-Posten, a publicar as charges, segundo notícia publicada no jornal O Estado de S. Paulo (9/2): o escritor e jornalista dinamarquês Kare Bluitgen concluíra um livro infantil sobre o Alcorão e a vida de Maomé, e não encontrava ninguém para ilustrar a obra, pois os desenhistas temiam represália de extremistas, já que o Islã proíbe representações do profeta. Um ilustrador aceitou fazer os desenhos, mas não quis ver seu nome publicado no livro. Essa experiência e a declaração do comediante dinamarquês Frank Hvam dizendo que ousaria urinar sobre a Bíblia, mas não sobre o Alcorão, levaram o jornal a questionar se havia autocensura no país e na Europa, com relação aos temas islâmicos. O jornal resolveu então lançar o desafio de retratar Maomé. Doze desenhistas aceitaram a proposta: as charges geradoras da confusão foram publicadas em setembro do ano passado. Agora, depois das terríveis ameaças dos integristas, quem vai se arriscar a publicar um novo desenho, mesmo que profundamente respeitoso, de Maomé?
Resta uma pergunta. Qual o mal maior? Uma suposta provocação de um jornal sem muita importância no contexto europeu ou o avanço dos fundamentalistas sobre um dos pilares sobre os quais se assenta a democracia: a liberdade de imprensa?
Maomé ou Muhammad?
Alguns jornais e portais de notícias da internet grafam o nome do fundador do islamismo como Muhammad, ao passo que a maioria dos meios de comunicação opta por Maomé. Qual o certo? Provavelmente ambos, dependendo da forma que se faz a transliteração, ou seja, a passagem dos caracteres da escrita árabe para o alfabeto latino, buscando proximidade com a pronúncia original. Os sites islâmicos na internet usam mais a forma Muhammad, mas não deixam de grafar Maomé. Na Agência de Notícia Brasil-Árabe (www.anba.com.br), achei textos com a grafia Maomé e outras como Muhammad.’