Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Polarização na imprensa afeta debate sobre feminismo

A causa feminista está definitivamente em evidência. Nos últimos dias, acontecimentos como o assédio virtual sofrido pela garota Valentina Schulz; o tema da redação do Enem sobre a persistência da violência contra a mulher no Brasil e as manifestações contra o projeto de lei que dificulta o acesso ao aborto legal fizeram com que até o mais alienado dos cidadãos se dispusesse a refletir sobre o papel social da mulher em nossa contemporaneidade.

Como não poderia deixar de ser, mediante estes casos emblemáticos, a mídia brasileira também se propôs a debater o feminismo. Na imprensa considerada alternativa – representada pelas revistas Fórum e CartaCapital e pelos jornais Brasil de Fato e Brasil 247, entre outros –, a presença do pensamento da ativista Simone de Beauvoir no Enem foi recebida de maneira positiva. Para Rogério Galindo, da Gazeta do Povo, “quem odeia o feminismo normalmente odeia, de fato, é a liberdade das mulheres”. Por sua vez, a Folha de S.Paulo publicou no domingo (1/11) uma oportuna matéria sobre o surgimento de coletivos feministas que debatem temas como homofobia, assédio sexual, bullying eletrônico e o veto a shorts em escolas paulistas das redes pública e particular. Até o comentarista Alexandre Garcia, da Rede Globo, famoso por suas ideias retrógradas, considerou positivo o tema da redação do Enem, pois, segundo ele, a violência contra a mulher era, até então, um assunto tabu que a maioria das pessoas preferia não abordar. Por outro lado, ao contrário das visões otimistas, a graduanda em Letras Odete Cristina advertiu, em artigo publicado no portal Esquerda Diário, que o Enem não virou feminista somente por trazer em suas questões temas relacionados com os movimentos sociais de mulheres. “O Enem ainda é um vestibular, um filtro que barra milhões de mulheres, jovens e trabalhadores do acesso ao ensino público”, concluiu Odete.

Em contrapartida, a ascensão da causa feminista também provocou reações negativas nos setores mais conservadores de nossa imprensa. Segundo Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, as mobilizações de mulheres contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e pelo direito ao aborto legal (ou seja, pela prerrogativa de poderem mandar em seus próprios corpos) são ações de “fascistas de esquerda, feminázis e feticidas” que “marcham em favor da morte”.

O desafio da equidade entre os gêneros

Já os membros do The Noite, exibido pelo SBT, ridicularizaram o tema da redação do Enem e desdenharam das estatísticas que apontam o grande número de casos de violência contra as mulheres no Brasil. Não por acaso, recentemente outro integrante do programa, o líder do Ultraje a Rigor Roger Moreira, se envolveu em uma polêmica ao ironizar uma campanha virtual inspirada no caso de Valentina Schulz que incentivava mulheres a relatarem casos de assédio sexual na infância. É o humor utilizado como maneira sutil de transmitir preconceitos, estereótipos e visões de mundo sem que o público tenha a real noção das intenções de certos nomes da mídia.

Em suma, os setores conservadores de nossa sociedade não aceitam o feminismo ou qualquer outro tipo de engajamento social que represente a mínima possibilidade de melhoria nas condições de vida de grupos historicamente inferiorizados como mulheres, pobres, negros ou homossexuais. Enquanto no Nepal, nação asiática que adotou o regime republicano há apenas sete anos, uma líder comunista e feminista foi eleita presidente, no Brasil muitos indivíduos ainda ficam incomodados com a simples menção à questão de gênero em provas, passeatas ou nos meios de comunicação.

Numa época em que a conjunção de vários fatores tem ensejado o fortalecimento do conservadorismo ideológico na sociedade brasileira, é importante que as causas das minorias estejam cada vez mais em evidência. Diante dessa complexa realidade, fomentar uma organização social pautada pela equidade entre os gêneros é um enorme desafio. E essa tarefa não é somente dos movimentos feministas, mas de todos os indivíduos que anseiam por uma sociedade mais justa e solidária.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG