Se quisermos conhecer as verdadeiras faces do preconceito no Brasil, basta analisar a repercussão de ações que visam a conceder algum tipo de melhoria nas condições de vida de setores sociais historicamente marginalizados. Quando as cotas raciais em universidades públicas começaram a ser aplicadas, grupos conservadores prontamente se organizaram para apontar que essas ações afirmativas iriam nivelar por baixo o ensino superior brasileiro. Para as mentes racistas, “preto não pode ser doutor”.
Já a grande ascensão social registrada na última década fez com que a população pobre se fizesse presente em lugares como aeroportos e shopping centers. Não por acaso, uma das grandes frustrações das classes média e alta foi ter que dividir espaço com indivíduos que, segundo o status quo elitista, deveriam se limitar às favelas ou aos bairros mais pobres. As mesmas pessoas que abominam o Bolsa Família por supostamente incentivar os pobres ao ócio e a ter mais filhos (quando as estatísticas corroboram o contrário) se calam diante do fato de o governo federal dedicar quase metade de seu orçamento para o pagamento de dívidas (locupletando ainda mais o setor financeiro do capitalismo).
Pois bem, o Colégio Pedro II, localizado no Rio de Janeiro, decidiu extinguir o uso de uniformes masculino e feminino, deixando a cargo do estudante a possibilidade de escolher qual vestimenta utilizar, calça ou saia, de acordo com sua identificação de gênero. Como não poderia deixar de ser, a atitude da centenária instituição carioca revoltou as mentes intolerantes, que não se intimidaram em expressar preconceito contra aqueles que não se enquadram nos padrões de gênero socialmente aceitos. Nas redes sociais, espaço em que não há limites para os delírios ideológicos, internautas diziam que a atitude do Pedro II coloca em risco a sexualidade dos alunos, “afeminando” os meninos a partir de uma suposta “doutrinação gayzista”. Em sua página, o pastor Renato Vargens asseverou que o comportamento firme, comum aos homens, tem sido “docificado”, proporcionando com isso uma grave crise comportamental na sociedade, além de uma nítida inversão de papéis.
O direito ao respeito
Para o deputado federal Jair Bolsonaro, o ensino da “ideologia de gênero é o esculacho da família brasileira”. Por usa vez, o também parlamentar Sóstenes Cavalcante, em pronunciamento na Câmara que parecia ter vindo direto da Idade Média, disse estar indignado com a decisão da reitoria do Pedro II: “Eu sou da época em que meninas iam de saia [à escola] e até por conta de boa moral, de decência dentro de sala de aula, solicitou-se que o sexo feminino pudesse vir de calça, porque é mais decente.
Agora a gente faz o caminho inverso”, esbravejou Cavalcante. “Na minha época de colégio, se esses moleques chegassem vestidos assim (de saias), tomariam merecidamente uma sova daquelas bem dadas”, escreveu Rodrigo Constantino, famoso porta-voz da juventude reacionária. No blog da revista Veja, Reinaldo Azevedo, conforme o de costume, aproveitou para atacar o PT e a esquerda: “A ideologia de gênero, que tenta se impor na porrada nas escolas, sob o patrocínio do petismo e de esquerdismos ainda mais mixurucas, é que tem de ser combatida. Até porque o gayzismo e o feminizanismo representam apenas a si mesmos. Não são expressões da vontade nem dos gays nem das mulheres.” Por outro lado, uma reportagem do SBT saudou a decisão do Pedro II como uma lição no quesito liberdade individual. A matéria ressaltou ainda outras decisões revolucionárias da instituição, como a permissão para que travestis e transexuais pudessem usar o nome social.
É preciso esclarecer que a decisão do Colégio Pedro II não está, em hipótese alguma, impondo o uso de saias aos homens nem o de calças às mulheres. Trata-se apenas de liberdade de escolha. Seguindo a lógica falaciosa dos opositores da extinção de uniformes escolares por gênero, outras medidas progressistas como a legalização da maconha faria com que todos fumassem ou a liberalização do aborto em qualquer circunstância levaria todas as mulheres a interromper a gravidez. Ora, excluindo condicionantes climáticos, qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento em antropologia sabe que roupas não são dados naturais, mas padrões culturalmente construídos. Independentemente de opção sexual, na Escócia, por exemplo, saias são usadas “normalmente” por homens. Além do mais, quem está resolvido com sua sexualidade, dificilmente vai se incomodar com a identificação de gênero alheia.
Em uma época tenebrosa para a educação brasileira, com projetos como Escola sem Partido e propostas de “enxugamento” do ensino médio, a atitude do Pedro II, ao “contribuir para que não haja sofrimento desnecessário entre aqueles que se colocam com uma identidade de gênero diferente daquela que a sociedade determina” (conforme palavras do próprio reitor), mostra-se uma luz progressista em meio à obscuridade vigente. Em última instância, as minorias não estão em busca de privilégios (diga-se de passagem, o medo de perdê-los é que leva muitos indivíduos a odiar o diferente), tampouco de impor um padrão de conduta para o restante da sociedade. O que elas estão pleiteando é somente o direito de se sentirem respeitadas, independentemente das imposições machistas, heteronormativas, classicistas e racistas que infelizmente ainda norteiam as relações sociais no Brasil.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestrando em Geografia