Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Polícia chama jornalistas às falas

A grande mídia gaúcha prosseguia, neste final de semana (18-19/3), em sua cruzada contra o MST e a Via Campesina, após a invasão da unidade da Aracruz, no Dia Internacional da Mulher (8/3/2006). ‘Chávez impulsiona ação do MST no Brasil’, diz a manchete de capa de Zero Hora, principal jornal do Rio Grande do Sul, na edição dominical (19/3). Em longa reportagem, das páginas 4 a 7, o órgão da RBS tenta provar que os sem-terra – ‘com sotaque espanhol’ – fariam parte de uma ‘multinacional de protestos’, inspirada na ‘revolução bolivariana’ do presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

Já o jornal O Sul, da capital gaúcha, apresenta na edição de sábado (18/3) reportagem de página inteira na qual um integrante da Via Campesina afirma: ‘Não é quebrando ou matando que se avança na luta pela reforma agrária’. Militante do PT, presidente da Câmara de Vereadores do pequeno município de Não-Me-Toque, o vereador Ibanez Quadros revela, na matéria, que chegou a ser convidado para a invasão da unidade da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro. Mas preferiu não se envolver.

A matéria de O Sul destaca que ‘não foi a primeira vez que o vereador petista e militante da Via Campesina foi convidado a participar da destruição de símbolos do capitalismo’. Ibanez prefere soluções mais brandas: ‘A gente sabe que o capitalismo no mundo é destruidor. Mas acho que as coisas boas do capitalismo têm de ser mantidas’.

Mas o outro lado desse noticiário veio do site Coletiva.Net. E sem que nenhuma linha tenha sido publicada sobre a intimação (ou intimidação?) de jornalistas pela polícia, na grande mídia gaúcha. Na quarta-feira (15/3), a manchete do Coletiva.Net era: ‘Em 20 anos de profissão, nunca me senti tão constrangida’. Este é o depoimento da jornalista Luciamen Winck, repórter do Correio do Povo, de Porto Alegre, intimada a depor sobre a invasão da Aracruz. ‘Eu e o fotógrafo Luís Gonçalves recebemos a intimação na redação. O documento dizia que, se não comparecêssemos, seríamos buscados coercitivamente’. Ela e o fotógrafo do CP passaram mais de quatro horas contando detalhes da cobertura do incidente em Barra do Ribeiro. ‘Tenho mais de 20 anos de profissão, e nunca me senti tão constrangida. Pela primeira vez, faço uma matéria e depois tenho que comparecer à delegacia para depor’, desabafou Luciamen.

Outros três jornalistas também foram obrigados a depor: Jurema Josefa (Correio do Povo) e a editora e apresentadora do SBT-RS, Cristiane Finger, e sua repórter Caroline Melo. Segundo o site Coletiva.Net, Cristiane e sua repórter foram interrogadas sobre detalhes da invasão das camponesas da Via Campesina. A polícia também queria saber quem era a fonte que transmitira a informação da invasão ao SBT-RS. ‘Invocamos nosso direito constitucional de preservar a fonte. E, apesar do longo tempo em que ficamos lá na delegacia, quase nada tivemos a acrescentar além daquilo que nossas reportagens e imagens mostraram’, disse Cristiane Finger.

Histórico de contaminação

Enquanto a grande mídia gaúcha dedicava páginas e colunas para condenar a invasão da Via Campesina, a revista CartaCapital (15/3), em artigo de Antonio Luiz M. C. Costa, destacava o enorme risco do Mercosul estilhaçar-se, caso permaneça sem solução o impasse entre Uruguai e Argentina em torno das fábricas de celulose, as papeleras (ver ‘Invasão provoca atrito na mídia gaúcha‘, neste Observatório).

Para Costa, a questão das papeleras passa por ser ambiental, mas seria antes de tudo política. Os pomos da discórdia são duas fábricas de celulose perto da cidade de Fray Bentos, no Uruguai. A finlandesa Botnia (1 milhão de toneladas/ano a partir de 2007) e a espanhola Ence (500 mil a partir de 2008) deverão fazer do Uruguai o terceiro produtor da América Latina, depois de Brasil (10 milhões) e Chile (3 milhões), informa Costa em seu artigo.

Um problema político? Ambiental? Ou econômico? Afinal, para onde correm os rios cor de papel? Para ambientalistas uruguaios, seu país sacrifica o meio ambiente por quase nada. Para atrair as usinas multinacionais, o governo uruguaio já subvenciona em até 50% o plantio de eucaliptais, além de outros benefícios. A própria Botnia revela que poucos empregos permanentes serão criados em sua fábrica: 300 diretos e cerca de 8 mil indiretos, diz a matéria da revista. Os populares e os ambientalistas que estão bloqueando as pontes entre Argentina e Uruguai defendem três pontos básicos: a saúde da população de ambos países, seu modo de vida e o meio ambiente fluvial do Rio Uruguai e seus afluentes.

No site Voltairenet.org, da França, o jornalista Nicolás Rzonscinsky, da Rádio Nacional Argentina, dá detalhes inéditos sobre as papeleiras. E afirma que estas multinacionais nunca ofereceram segurança ambiental aos seus empreendimentos. Ele desvenda tanto a Botnia como a Ence e faz um breve histórico das empresas.

A Botnia opera sobre o lago Saimaa, o maior da Finlândia, e envolveu-se em grave acidente ambiental no verão de 2003. A partir deste incidente, a empresa começa a sair de terras finlandesas rumo a países onde há menor controle ecológico. As normas ambientais européias exigem tratamento antitóxico totalmente livre de cloro. A Botnia trabalha com o sistema ECF (livre de cloro elementar), descarregando nas águas a dioxina, substância altamente tóxica e cancerígena. A partir deste ano de 2006, diz o jornalista argentino, o sistema ECF será proibido em toda a Europa. Aliás, há pequenas fábricas de celulose Argentina que ainda usam o sistema ECF.

Já a Ence (Empresa Nacional de Celulose de Espanha), fundada em 1957 por Francisco Franco, homem forte do país ibérico àquela época, é conhecida na Europa pela poluição ambiental. Há várias organizações sociais lutando para que encerre sua produção em Pontevedra (Espanha). Em novembro de 2005, seis executivos da empresa foram condenados por contaminação ambiental e a empresa teve pagar multa de mais de 400 mil euros.

Questão de sobrevivência

Acima de todas estas questões, a sociedade se organiza nos dois lados da fronteira Uruguai-Argentina. Em favor da vida, da saúde e da água potável para hoje e para gerações futuras, contra as chuvas ácidas e as emanações malcheirosas de enxofre e cloro, contra os derivados cancerígenos e organoclorados, os ambientalistas e pessoas das comunidades continuam bloqueando as pontes entre os dois países. Eles decidiram tomar em suas mãos o destino de sua terra e de seus rios.

Mas o presidente uruguaio Tabaré Vásquez insiste no fim do bloqueio das estradas e das pontes na província argentina de Entre Rios, conforme notícia do jornal La Nación, de Buenos Aires (18/3). Vasquez afirma que as papeleras da Botnia e da Ence serão construídas. E nega qualquer pacto ou acordo com o presidente argentino, Nestor Kirchner, para encontrar um ponto em comum que ‘satisfaça a preocupação popular por eventuais contaminações que as fábricas possam vir a produzir’, afirma o conservador jornal argentino.

No fim de semana, a par das manchetes de jornal de Porto Alegre, os ambientalistas argentinos esperavam delegação vinda de Paraná, capital da província, para manifestar seu apoio ao movimento que já está no seu segundo mês. Neste domingo, revela LaNación.com, um barco do Greenpeace zarparia do cais de Puerto Madero em direção a Fray Bentos, para somar-se aos protestos contra as papeleras.

E então: para onde correm os rios que têm a cor papel? Eles correm para os afluentes dos rios, para os mananciais de água potável, descem com sua carga tóxica e cancerígena rumo ao Rio da Prata e ao Oceano Atlântico, poluindo e devastando o ar e as águas.

Se o MST fosse de fato impulsionado por Chávez – como garante Zero Hora –, já se pode constatar com clareza que esta questão, levantada pela invasão da Via Campesina, é muito mais complexa. Ela diz respeito, enfim, à própria sobrevivência, com qualidade, das pessoas de hoje e de amanhã. Ela diz respeito à dignidade das pessoas comuns, que se levantam por seus direitos, ignorados ou desprezados pela tecnoarrogância que dirige, hoje, os destinos deste pequeno planeta.

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Jornalista, filiado à Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência