Atualmente a mídia vem utilizando simplificadamente um conceito que acabou virando moda e está servindo para ‘explicar’ qualquer fenômeno que tem povo como ingrediente. Estamos falando de ‘populismo’ e ‘populistas’, que parece ser a receita preferida de dois em cada três colunistas.
Se um ocupante de cargo do Executivo faz um discurso crítico à política neoliberal que vem sendo executada desde os anos 1990, ganha o título de ‘populista’. Bastou algum político demonstrar preocupação com o estado de pobreza e miserabilidade que vem crescendo nos últimos anos, o analista de plantão carimba a pecha ‘populista’.
Possivelmente, poucos desses ‘brilhantes’ analistas sabem que o termo em questão apareceu, por volta de 1965, no receituário político brasileiro pela pena do sociólogo paulista Francisco Weffort, que mais tarde veio a se tornar ministro da Cultura do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, depois de passar um período no Partido dos Trabalhadores, com alguns seus amigos sabichões da academia. Um outro sociólogo, que também usou por demais em suas análises o referido termo, veio a se tornar presidente da República por dois períodos, ou seja, oito anos.
De malas e bagagens
O cientista político Otávio Ianni, também de São Paulo, acabou se tornando uma espécie de guru do mundo acadêmico depois de publicar O colapso do populismo no Brasil. Este trabalho, por sinal, transformou-se numa espécie de ‘farol’ que influenciou as novas gerações acadêmicas e de políticos de esquerda. Quem porventura se insurgisse ou questionasse o uso indistinto do ‘populismo’ era expurgado do mundo dos pensadores, pelo menos os de São Paulo. Até mesmo Darcy Ribeiro, um dos poucos intelectuais que se insurgiram contra o que considerava mesmice, não foi poupado.
Nos anos 1940, em pleno primeiro período de Getúlio Vargas, os dicionários praticamente ignoravam a palavra populismo. Os politicólogos foram se familiarizando em suas análises para, de um modo geral, condenar governos anteriores a 1964. Getúlio, por exemplo, é considerado pelo pessoal da academia como o maior exemplo de ‘populista’. Bastou ter feito, como presidente eleito ou ditador, algo voltado para o povo para que os tais analistas o reduzissem a essa condição. João Goulart foi visto sob os mesmos parâmetros, e igualmente o governador por duas vezes do Estado do Rio e uma vez no Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
Este não foi poupado, juntamente com o pensador Darcy Ribeiro, sobretudo quando criou os Cieps, que acabaram conhecidos como ‘Brizolões’. As escolas de tempo integral chegaram a ser criticadas por setores de esquerda, ainda influenciados por Weffort e Ianni, com o argumento de que colégio não é restaurante. Esses propagadores das idéias de Weffort ficaram abalados depois que ele se bandeou de malas e bagagens para as hostes neoliberais tucanas.
Apoio incondicional
Com o fim da ditadura, o termo populismo ficou meio em segundo plano, pelo menos entre os analistas de plantão da mídia. Afinal, depois de tantos anos de falta de liberdade e com o fim de muitas das poucas concessões feitas aos trabalhadores, a volta aos padrões de democracia formal trouxe também o retorno de algumas questões de interesse dos setores sociais que muito perderam no período da ditadura.
Os acadêmicos paulistas pouco a pouco foram retornando aos seus postos, sendo que o de maior prestígio entre eles acabou virando presidente da República, esforçando-se para que os que o conheceram como acadêmico esquecessem o que ele havia escrito. Fernando Henrique Cardoso adotou em toda a sua radicalidade uma política lesiva aos interesses dos trabalhadores e da nação. E tudo isso sob a capa da modernidade e do antipopulismo. A Petrobras, por exemplo, pela qual o tio, Felicíssimo Cardoso, e o pai, Leônidas Cardoso, tanto lutaram, acabou tendo pouco a pouco as suas ações entregues, na gestão do herdeiro, a acionistas estrangeiros.
A mídia, claro, não poderia faltar no apoio incondicional a essa política, passando a designar, com maior intensidade, de ‘populista’ e ‘jurássico’ aquele que se voltasse contra a descaracterização da empresa petrolífera.
Pautados pela CIA
Em termos de análise de política internacional, qualquer chefe de Estado que se recuse a seguir as ordens ditadas por Washington é considerado populista pelos senhores da mídia. De Fidel Castro a Hugo Chávez, passando por Jaime Roldós, o presidente do Equador que tentou defender que o petróleo ficasse sob controle do povo, não mais nas mãos das multinacionais, e acabou morrendo num desastre aéreo em circunstâncias obscuras, passando pelos generais Omar Torrijos, do Panamá (que também morreu em desastre aéreo meio estranho), e Juan Velasco Alvarado, do Peru, todos, sem exceção eram denominados ‘populistas’. Juan Domingo Perón e o próprio Getúlio Vargas, passando por Victor Haya de La Torre, do Peru, também não foram poupados na designação que nada explica.
O mais citado e criticado atualmente é o presidente da República Bolivariana da Venezuela, para os analistas de plantão ‘um mau exemplo para a América Latina’, pelo simples motivo de que Chávez não se dobra aos ditames de Washington, muito pelo contrário – ou então pelo fato de as divisas do petróleo não irem mais para os bolsos de corruptos, como acontecia antes de 1998, mas agora para usufruto do povo. Não pode, isso é ‘populismo’, dizem os mais amestrados colunistas da praça.
Alguns jornais ou emissoras de TV chegaram mesmo a enviar jornalistas para cobrir acontecimentos em Caracas. Não é preciso dizer que fizeram matérias que mais pareciam pautadas pela CIA ou pelo Departamento de Estado do que outra coisa. Deixaram de lado a ‘imparcialidade’. Houve até um âncora matinal do maior canal televisivo do Brasil que saudou um golpe de estado, que acabou não dando certo. Revistas semanais deram barriga, aplaudindo a ‘derrubada’ do presidente constitucional venezuelano, quando algumas horas depois do sucedido o dirigente voltava ao governo nos braços do povo em união com as Forças Armadas.
Vozes discordantes
A partir do momento em que o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a se reunir com mais constância com os representantes dos setores sociais, aí, então, nem se fala. Os jornais conservadores ficaram ainda mais indignados quando Lula, na cidade de Floriano, no interior do Piauí, citou Getúlio Vargas, mais precisamente lembrando que ele foi execrado quando criou a Petrobras. Lula falou tudo isso no contexto da inauguração da usina de produção de biodiesel, que usará como matéria-prima a mamona. Lula, quem diria, já chegou a considerar Vargas um ‘mero populista’, naturalmente por influência do pessoal da academia…
Hoje, qualquer governador de estado que porventura adote uma política mais voltada para os interesses do povo não passa de ‘populista’. Se por acaso vier a abrir restaurantes ao preço de um real por refeição, imitando tão somente o que existia antes de 1964 em vários pontos da cidade do Rio de Janeiro e pelo Brasil afora, os Saps, aí então é que ele será ‘queimado’ em definitivo como ‘populista’.
Os exemplos seriam muitos mais do que os mencionados ao longo destas linhas. Nos dias atuais, os tais analistas não estão tão absolutos, mesmo na academia muitas vozes já se fazem ouvir questionando a simplificação adotada pela mídia.
Nas redações
No final das contas, os acadêmicos, sem visão crítica, copiaram o conceito populista de outras realidades, principalmente européias, totalmente distintas das do Brasil e do resto da América Latina. Eis aí uma questão da mais alta relevância, cuja discussão até agora tem passado longe da mídia. Só para se ter uma idéia, os acadêmicos juntaram num mesmo saco a classe operária surgida na Europa e a que se formou na América Latina. Não conseguiram, ou não quiseram, separar o joio do trigo. Isso, para começar a discussão, principalmente entre aqueles que se recusam a ser meros copiadores de realidades que nada têm a ver com aquelas em que vivem, seja na direita ou mesmo em determinados setores da esquerda.
A mídia, que hoje cultiva o mundo acadêmico, convidando para debates figuras pelo simples fato de serem acadêmicos, não raras vezes falando o óbvio ou não ousando discordar do estabelecido, continua insistindo em afirmar a todo o momento que quem não reza por uma determinada cartilha, justamente a cartilha neoliberal do capital financeiro, não passa de ‘populista’.
Resta saber quando esta mídia que se considera falsamente imparcial decidirá debater tais questões. Ou isso nunca será objeto de preocupação nas redações?
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Jornalista