No dia 23 de julho de 2008, o então governador do Amazonas, Eduardo Braga (PMDB), declarou para toda população do estado que iria acionar judicialmente os jornalistas Valmir Lima, do jornal Diário do Amazonas, e André Alves, de A Crítica. Motivo: Braga não gostou das perguntas dos jornalistas feitas ao então candidato a prefeito de Manaus, Omar Aziz (PMN) – hoje candidato ao governo do Amazonas –, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura do Amazonas, realizado três dias antes.
No programa, os jornalistas fizeram questionamentos sobre suspeitas de obras fantasmas e outras irregularidades da gestão que estariam sendo deixadas de investigar por conta da ingerência do próprio governo. Braga disse que as perguntas eram ‘caluniosas’ e, diante disso, pediu direito de resposta à própria TV Cultura do Amazonas (como se fosse necessário, já que a referida emissora é [mal] administrada pelo próprio governo).
O direito de resposta foi devidamente concedido pela direção da emissora, o que rendeu a Eduardo Braga um programa em edição ‘especial’ com uma hora e quarenta minutos de duração, onde ele (e sem nenhum jornalista questionador por perto) expôs sua própria versão dos fatos. Foi justamente a ocasião em que Braga anunciou à toda população que acionaria, na Justiça, os profissionais de imprensa. Braga desistiu de processar André Alves, mas acionou Valmir Lima, em um processo que perdura até hoje.
Perguntar é crime?
Recordo-me do caso justamente pelo momento atual por que passa o Brasil e a discussão nacional sobre liberdade de expressão e opinião – sobretudo pelas investidas de grandes corporações de mídia interessadas no resultado das eleições presidenciais. E, ainda, diante do comportamento de outras tantas ‘autoridades’ no Brasil que, por ocuparem cargos de importância do ponto de vista político e social (e econômico), sentem-se no direito de se incomodar – e até desqualificar – perguntas feitas por jornalistas. Afinal de contas, perguntar é crime? No período da ditadura militar, sim – crime passível de prisão, tortura, morte ou desaparecimento. Hoje, não. Não oficialmente.
Há quem acredite que estamos vivendo, em nossos dias atuais, os áureos tempos do regime. Quando falo em liberdade de expressão, não estou compartilhando da visão de alguns veículos de comunicação que tratam o tema como se fosse algo similar a fazer acusações sem provas, injúria, calúnia, difamação e toda sorte de crimes semelhantes previstos em lei. Refiro-me, unicamente, ao ato de perguntar. Perguntar é crime, na visão de muitas autoridades, o que pode render ações judiciais, aberturas de inquéritos ou outras investidas facilmente classificadas, quando do uso de bom senso, de ‘baixaria de campanha’.
Há quem veja, diante de uma pergunta, uma provocação, uma insinuação ou mesmo uma acusação. Mas não seria a resposta da autoridade questionada que desmontaria – se fosse o caso – as supostas provocações, insinuações ou acusações, se é que existem? Se as perguntas feitas fossem, hipoteticamente, insinuações ou afins, o que impede a autoridade questionada – usando da capacidade intelectual que, na teoria, a compete justamente por ocupar o rótulo de ‘autoridade’ – de respondê-las e, assim, não deixar dúvidas sobre sua retidão enquanto profissional?
‘Suportar adversidades’
Nada. Uma pergunta, por mais capciosa ou ‘sarcástica’ que seja, pode ser respondida. Se não há interesse (ou argumentos) em responder, que o faça – o que é direito de qualquer um –, mas sem desqualificar a quem pergunta. Intimidar, usando de sua autoridade, é crime.
Aliás, um parêntese sobre sarcasmo. Há cerca de dois anos, estreava o programa Custe o Que Custar (CQC), da TV Bandeirantes. Chamou a atenção sua forma nada convencional de tratar de política e, sobretudo, dos bastidores da política – e do poder. O sucesso foi imediato. Mas, à medida que surgiam os elogios, surgiam também as críticas. Há os que dizem que o programa CQC não é de caráter jornalístico, enquanto há quem diga que isso não é exatamente um problema, já que cumpre o papel de informar.
O jornalista Carlos Brickmann fez sua avaliação particular sobre o programa – e sobre as reações de seus entrevistados, as ‘autoridades’ – em comentário publicado no Observatório da Imprensa, no dia 4 de novembro de 2008 – opinião dele, porém que compartilho (salvo pela referência ao programa Pânico que, na minha opinião, não tem exatamente o mesmo fim do CQC):
‘O CQC, como o Pânico, tem forte tendência a ultrapassar certos limites, o que não é bom; mas, ao mesmo tempo, é exatamente essa tendência, essa ousadia, que abre novas possibilidades de captação de notícias. Ideias como a de entregar uma medalha de prata a quem tirou o segundo lugar no segundo turno são inovadoras, tanto que ainda não é possível saber se são ofensivas ou apenas engraçadas; mas, de qualquer forma, revelam o estado de espírito do perdedor com muito mais precisão do que as perguntas tradicionais da reportagem tradicional.
O exercício de um mandato eletivo está longe de ser (ou deveria estar longe de ser) um caminho suave, com lindas paisagens e riachos murmurantes. O exercício de um mandato eletivo exige capacidade de rebater dificuldades, de manter-se equilibrado diante de desafios, de suportar adversidades. Quem não for capaz de manter o bom-humor diante de uma provocação de jornalistas-humoristas talvez não tenha condições de conter-se diante de problemas reais’ (‘O humor e o escracho a serviço da notícia’, Observatório da Imprensa, em 04/11/2008).
Crise de identidade
Diante da reação de tantas autoridades desgostosas com perguntas de jornalistas dos mais variados veículos de comunicação, pergunto: não seria isso mera arrogância? Afinal, estamos falando de ‘autoridades’ constituídas, de uma forma ou de outra, e jornalistas que, por mais que os coloquem no famigerado ‘Quarto Poder’, não desfrutam de tal prerrogativa. Jornalista não é ou tem autoridade legal como uma ‘autoridade’ de fato. E talvez por isso, algumas dessas pessoas se sintam tão incomodadas com perguntas indesejadas.
Trata-se de um caso a ser analisado, tanto pelas autoridades que padecem desse mal como por jornalistas e médicos. Sim, médicos. Diante de tantos casos de autoridades brasileiras que, ao serem questionadas, perguntam aos próprios jornalistas se estes sabem com quem estão falando, só posso crer que alguns sofrem de alguma patologia clínica. Um tipo de crise de identidade. O caso precisa ser debatido até porque este ‘mal’ tem gerado pilhas e mais pilhas de processos contra jornalistas ou mesmo cidadãos cientes de seus direitos constitucionais de liberdade de expressão e opinião.
Ou seja: cometeram o crime maior da nossa democracia.
******
Jornalista, redator, escritor e fotógrafo