Na sexta-feira (19/6), em seu programa radiofônico matinal, o jornalista Ricardo Boechat mandou o pastor Silas Malafaia buscar rola, causando razoável frisson nas redes sociais e proporcionando certo regozijo entre aqueles que abominam as posições defendidas pelos arautos do ódio, como o pastor. Contudo, para além desse pequeno gozo de vingança, de que serviu, qual a profundidade do desabafo de Boechat?
Escuto-o com alguma frequência no rádio, visto que os comentaristas da rádio concorrente são intragáveis (ouvir Sardenberg, Jabor, Leitão, Madureira logo de manhã acaba com qualquer dia, e nem cito a excrescência que ocupa uma faixa do dial do rádio). Com tempo de sobra e liberdade além do que dá conta, Boechat seletivamente abusa de uma indignação moralista – bem ao gosto da classe-média diplomada e burra. Sua resposta a Malafaia é apenas estardalhaço muito com questão pouca – para não ter que cutucar onde realmente importa. Boechat abusa de adjetivos indelicados – “otário”, “pilantra”, “idiota” – de chavões que não fazem ninguém repensar sua posição – “você é um charlatão, cara, que usa o nome de Deus, de Cristo, para tomar dinheiro de fieis” –, e de um quê de valentão que chama o bandido pra briga. Isso acrescentou algo ao debate?
Alguns memes daqueles que repudiam as posições do pastor, desconfio que palavras de indignação contra o jornalista entre aqueles que seguem e aplaudem o referido arauto do ódio. E o que mais? Mais nada. Boechat poderia mais – quero crer. Primeiro, Boechat poderia mostrar que para discutir com um troglodita não é preciso se equiparar a um – assim como para combater a violência não é preciso apelar para a violência (ou então estaremos fazendo como o governador de São Paulo e legitimando assassinatos extrajudiciais). Ao simplesmente recusar “palanque” ao pastor, Boechat dá a ele o argumento de fugir do debate, de recusa do contraditório, de intolerância. E é aqui que o jornalista poderia bater não só no pastor, mas em quem lhe dá guarida. Pois Boechat poderia argumentar que não dará espaço para Malafaia porque ele, assim como a corja dos arautos do ódio, já possui espaço (e tempo) mais que suficiente para suas pregações, tempo e espaço que vão muito além do púlpito.
Uma versão modernex do explorador da fé alheia?
Tomemos como exemplo aleatório o Grupo Bandeirantes de Comunicação. Trata-se do grupo que comanda tanto a rádio em que Boechat é empregado, quanto a emissora de televisão em que ele apresenta o telejornal noturno. É do Grupo Bandeirantes a concessão pública de um outro canal, chamado Rede 21. Diz o Código Brasileiro de Telecomunicações que uma detentora desse tipo de concessão pública não pode ter mais que 25% do seu horário negociado – seis horas, portanto. Não é o que faz o chefe de Boechat, que aluga quase a integralidade da grade da Rede 21 para igreja evangélica – atualmente a Igreja Universal, do bispo Macedo.
Mas fiquemos na emissora principal do grupo, a Band. Confiro a grade de programação de sábado [http://naofo.de/5dhl]. Há nela uma hora – do meio-dia à uma – reservada para um programa chamado Vitória em Cristo, comandado pelo pastor Silas Malafaia – vejam só, que coincidência! (Há ainda duas horas para outras religiões, além de duas horas de “infomerciais”). Aqui, penso, fica claro o quanto Boechat ladra conforme manda o dono. Por que, junto com a crítica de que Malafaia “usa o nome de Deus, de Cristo para tomar dinheiro de fiéis”, ele não criticou também os Saad, que tomam dinheiro de quem usa o nome de Deus para tomar dinheiro dos fiéis? Por que ele – assim como a vinheta da Rádio Bandeirantes contra rádios piratas – não defende a prisão de seus chefes, por serem contraventores penais? Talvez Boechat acredite no provérbio de que “ladrão que rouba ladrão” não é ladrão, mesmo agindo em desacordo com a lei (em vários aspectos) – o bom e velho “dois pesos, duas medidas”. De onde Boechat acha que vem o dinheiro que paga seu salário, com o qual ele adquire seus bens, seu patrimônio? Se não chega diretamente das mãos dos fiéis, como no caso do pastor Malafaia e congêneres, sai das mesmas mãos, desses fiéis incautos, passa pelas mãos dos exploradores da fé alheia, das mãos destes vai para as da família Saad, e da dos chefes chega até sua conta. Mas dos donos Boechat não fala – nem ele nem qualquer outro jornalista da grande imprensa. Seria ele uma versão modernex do explorador da fé alheia? Mandar Malafaia buscar rola é diversionismo para ocultar as verdadeiras questões, aquelas que geram Malafaias, Boechats, Saads e uma massa de crentes – da igreja ou da imprensa – que aceitam e acreditam passivamente em tudo o que os pastores, os jornalistas, os “formadores de opinião”, os donos da grande imprensa falam.
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Daniel Gorte-Dalmoro é mestre em Filosofia