Com diferença de dois dias, a mídia publicou duas fortes manifestações contra a própria mídia que já provocaram enorme celeuma mas ainda não foram examinadas com o merecido cuidado. São igualmente veementes, mas discrepantes; talvez tenham os mesmos objetivos, mas produziram efeitos opostos.
A nota do Diretório Nacional do PT divulgada na terça-feira (19/9) [ver íntegra abaixo] tem por objetivo generalizar, não poupar ninguém. Concebida para enfrentar a ‘massificação totalitária’, ficou muito próxima do que se convencionou designar como totalitarismo puro e simples. Não estabelece diferenças, nivela por baixo, desumaniza o processo, coloca todos os jornalistas no mesmo limbo.
Injusta sob o ponto de vista moral, antidemocrática sob o ponto de vista político. Panfleto destinado a combater panfletarismo da imprensa que designa como golpismo midiático (item 10), cria um bode expiatório e as condições para um golpismo populista-caudilhista.
Já a carta de professora Marilena Chaui, divulgada pela Folha de S.Paulo (quarta, 21/9), não generaliza, não é totalitária [ver remissão abaixo]. Específica, tópica, nomeia situações e circunstâncias, trata de procedimentos, aponta erros, estimula reflexões e debates.
A nota do PT tem 13 itens e cinco referências muito agressivas ao que os redatores designam (com evidente desprezo) como mídia e órgãos de comunicação (a palavra imprensa – mais nobre – sequer apareceu, assim também jornalismo e jornalistas).
Histeria totalitária
Como nada acontece por acaso, com base nesses dados é legítimo calcular que 40% das agruras do Partido dos Trabalhadores são causadas por esta mídia denuncista a serviço da oposição. Os escândalos nos Correios, no IRB, na direção do PT, o valerioduto, o caixa dois, os ‘por fora’, os paraísos fiscais, o terremoto que sacode a política, nada disso aconteceu, é fantasia, criação do ‘festival denuncista’.
Os redatores da nota do Diretório Nacional passaram uma borracha no papel desempenhado pela mídia na última eleição presidencial e fizeram questão de esquecer que o candidato Lula converteu-se no presidente Lula como resultado de um ‘fenômeno midiático’, renegado pelo próprio PT quando critica os malabarismos marqueteiros de Duda Mendonça.
A nota da direção do PT tem o claro objetivo de dissociar-se do governo para enfrentar os partidos rivais. Seria legítima se o foco fosse mantido exclusivamente na disputa partidária. Mas ao afirmar que os partidos oposicionistas têm ‘ajuda irrestrita da ampla maioria da mídia’ os redatores esquecem a ajuda que esta mesma ‘ampla maioria da mídia’ prestou ao PT quando era oposição.
Custa crer que um partido que se auto-intitula como o responsável pela redemocratização do país se entregue agora à mais deslavada pregação antidemocrática. Sem imprensa não existe o Estado de Direito e o Estado de Direito existe para impedir que a imprensa abandone os seus compromissos com a isenção e a pluralidade.
Quando uma parte da imprensa erra, a outra procura (ou finge procurar) a direção contrária, se não para fazer justiça, pelo menos para manter acesa a concorrência. Apesar do efeito-manada da qual ainda não se libertou (e tão cedo não se libertará por causa da concentração), a imprensa está aprendendo a conviver com a crítica. Erros cometidos por jornais, telejornais e revistas ao longo desta crise não ficaram enrustidos, estão sendo apontados publicamente e publicamente discutidos. Certos comportamentos foram visivelmente alterados – Veja é um exemplo.
O PT deveria tirar partido deste aggiornamento jornalístico. Tem raízes intelectuais, tem tradição e, sobretudo, tem necessidade de buscar aproximações no campo moral para compensar as espúrias alianças no campo político. Se, por acaso, considera-se vítima da ‘mídia golpista’ deveria estimular a observação da mídia no lugar de exibir uma histeria totalitária que não lhe fica bem.
Polindo lentes
Quando emitiu a desastrada nota, o PT começava uma eleição interna, carecia de cargas explosivas contra o inimigo externo para evitar a devastação doméstica que se anunciava. Escolheu errado. Inspirado no modelo Hugo Chávez, preferiu diabolizar a imprensa. Apostou na retórica delirante dos palanques. E agora, quando se anuncia uma debandada interna sem precedentes, com as entranhas do partido à mostra, não tem a quem culpar.
A manifestação da professora Marilena Chaui não foi prepotente: fez um desabafo e um desafio. Fatigou-se da superexposição, pediu tempo para pensar, optou por recolher-se. A filosofia tem um componente íntimo que deveria ser respeitado – sem ele não se produzem as idéias. Principalmente diante da canibalização intelectual promovida pela mídia eletrônica.
Rádios e TVs do gênero all news precisam encher o tempo – afinal, não é sempre que aparece um Daniel Dantas driblando espertamente um bando de parlamentares completamente despreparados. Além do parajornalismo da indignação fabrica-se agora o parajornalismo da peroração, às vezes até bem pago, porém com efeitos perversos no processo de saturação.
Marilena Chaui preferiu o silêncio, está no seu direito. Defendeu-o com elegância e firmeza. Quando acusa a mídia de onipotência põe o dedo numa ferida que já incomoda jornalistas sensíveis – mesmo em altos postos de comando. Como professora, procurou ensinar um pouco de filosofia aos consumidores de jornais (que às vezes são jornalistas também).
Não esbravejou, não se mostrou dona da verdade, nem pretendeu convocar as massas para um quebra-quebra das empresas de mídia. Falou em La Boétie, amigo de Montaigne, lembrou Spinoza – o ético que não participava de seminários de ética, preferia ganhar a vida polindo lentes.
Marilena Chaui deveria ser convocada para supervisionar as próximas notas do Partido dos Trabalhadores. Deixaria todos mais seguros.
A nota do PT
[Resolução da Executiva Nacional do PT de 19 de setembro de 2005 – Aprovada por unanimidade]
Combinar a correção dos erros com a defesa do PT e do Governo Lula
1 – Ao longo dos últimos meses, um conjunto de denúncias contra o PT e o governo Lula foram divulgadas, todos os dias, pelos meios de comunicação do país, investigadas por três CPIs no Congresso, pela Polícia Federal, Ministério Público, e por outros organismos em diversos estados e municípios. Nunca na história do regime democrático brasileiro um partido sofreu tamanha inquirição, duros e sistemáticos ataques de partidos oposicionistas, divulgados com a ajuda irrestrita da ampla maioria da mídia.
2 – A partir disso começamos a enfrentar nossos erros, buscar a punição dos culpados e a debater as correções políticas necessárias à superação da crise, tanto no governo como no PT. No curso deste processo, dirigentes e representantes dos partidos oposicionistas, os novos vestais da moralidade, continuaram articulando duros ataques contra nós.
3 – Vários líderes políticos nacionais e regionais, vinculados à era Collor e à era FHC, principalmente do PSDB e do PFL, que se tornaram conhecidos nos momentos mais fortes de dilapidação do Estado brasileiro, privatizações selvagens, desorganização econômica do país e gravíssimos casos de corrupção, apresentaram-se como os novos salvadores da nação. E o fizeram como se a nação não conhecesse os seus métodos de governar e os seus vínculos com os reiterados ataques ao patrimônio público do país, motivo pelo qual impediram, a sua época, diversas CPIs sobre ações de seus governos.
4 – Agora, orientam os trabalhos das CPIs num sentido eleitoreiro, no qual o objetivo de efetivamente investigar e punir é desviado para mero aproveitamento político midiático, através do qual se apresentam como sacerdotes da moralidade, pouco se importando com o foco das investigações, os procedimentos legais que dão eficácia aos resultados e com a produção de provas para sustentar as punições. Estão transformando as CPIs em palcos de promoção pessoal sem a mínima preocupação com a busca da verdade.
5 – Comandantes da eleição de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara, em quem votaram para derrotar o governo, mesmo que isso custasse o aprofundamento da crise de credibilidade das instituições democráticas, hoje sequer pedem desculpas à nação pela sua postura irresponsável. Mesmo assim, continuam alimentando o denuncismo generalizado, sem qualquer respeito à verdade: combinam informações corretas – de erros já reconhecidos pelo PT e pelo governo – com inverdades, meias-verdades, ilações caluniosas, ao mesmo tempo em que congelam as investigações das CPIs. Isso ocorre, precisamente, quando elas deveriam buscar as origens da corrupção, desde quando ela ocorre, a quem ela sempre beneficiou e de onde vêm os recursos que a alimenta. Chegaram a ‘separar’ dos denunciados, correligionários cuja investigação abriria as portas para passar a limpo os seus governos e as suas campanhas eleitorais.
6 – Suas denúncias, porém, ordinariamente são apresentadas como irrefutáveis pelos mesmos setores da mídia que maciçamente diziam, até há pouco, que a presença do PT no governo era incapaz de promover o crescimento econômico, a paz social sem violência contra os pobres e excluídos, a estabilidade da economia e o emprego. Este processo covarde pela massificação dos meios de ataque pretende, na verdade, criminalizar o PT como organização partidária e apresentá-lo como uma fraude ética e política.
Chegam ao cúmulo de tentar imputar ao presidente do Supremo Tribunal Federal a condição de empecilho para ‘punições sumárias’ simplesmente porque ele acolhe o direito universal da ampla defesa. Trata-se de uma postura fascista, que agride o Estado de Direito e aqueles direitos mais elementares da cidadania.
7 – O festival denuncista tem finalidades claras: excluir o PT do cenário político nacional (livrar-se desta raça por 30 anos, diz o incorruptível Bornhausen); esmagar as esperanças de que os partidos políticos de esquerda possam governar com sucesso o país, fazer o povo esquecer a corrupção sistêmica que eles, como elite, implantaram historicamente no país; tornarem-se ‘inimputáveis’ como elite dirigente, como se nunca tivessem governado e como se nunca tivessem usado de métodos ilegais de financiamento de campanha ou mesmo tivessem responsabilidades em graves casos de corrupção.
8 – É verdade que o PT não adotou mecanismos de controle para combater estes desvios que estavam em nosso meio. Nem por isso é aceitável que os representantes da elite tentem consagrar-se como inocentes perpétuos, para voltar a instrumentalizar o Estado para os seus interesses de partido e de seus grupos econômicos como sempre fizeram. Queremos a punição irrestrita de todos os que cometeram ilegalidades, cumpridos todos os ritos formais determinados pela lei e pela Constituição. A pressa em punir pode gerar penas anuláveis com aproveitamento político imediato, mas sem qualquer eficácia num futuro próximo. A resposta apressada ao denuncismo histórico que se instalou é, na verdade, uma ‘pizza’ de médio prazo.
9 – O PT deve e pode reagir, sem deixar de corrigir-se, de admitir responsabilidades, de renovar seus métodos de governo e os seus métodos e políticas de direção, que permitiram a configuração dos seus erros. Mas o PT não pode assistir a esta formidável chantagem pública contra a sua própria existência, que hoje já alcança uma dimensão manipulatória só semelhante àquela que elegeu Collor em 89, legítimo representante das teses econômicas, morais e políticas do PFL e do PSDB, os quais, durante a gestão FHC, levaram o país ao desastre, configurado plenamente em 2001. O governo FHC, aliás, conseguiu combinar crescimento nulo, juros altos, inflação alta, aumento da dívida pública, aumento do desemprego e reeleição comprada. Quando Lula chegou ao governo, o país estava quebrado e a expectativa da direita neoliberal era que Lula, no governo, levasse o país ao desastre, o que geraria o isolamento interno e externo do país. Esse foi o primeiro desafio que o governo Lula enfrentou.
10 – O PT e todos os que defendem a democracia devem reagir ao golpismo midiático que pretende inviabilizar o mandato legítimo do Presidente Lula, um presidente que continua contando com a confiança dos brasileiros e brasileiras que querem o crescimento econômico, fortes políticas sociais, ampliação da democracia política, soberania política no cenário global e a construção de um novo modelo de desenvolvimento e de gestão do Estado, com base numa nova política de alianças que permita reconstruir o caráter reformador e radicalmente democrático do nosso Partido.
11 – A renovação das direções do PT deve gerar uma nova coesão interna, legitimada pelo atual processo eleitoral. Ela deverá permitir uma retomada da nossa iniciativa política, juntamente com um novo padrão de atuação das nossas bancadas na Câmara e no Senado. O governo, por seu turno, na opinião do Partido, deve acelerar a redução das taxas de juros, promover uma ação rápida para acelerar a execução orçamentária e abrir um debate efetivo com os nossos aliados do campo democrático popular sobre o orçamento do próximo ano, para, a partir daí, ampliar a discussão com todos os partidos representados no Congresso.
12 – Seu sentido é viabilizar uma lei orçamentária que impulsione ainda mais o crescimento, passe a promover de forma acelerada a distribuição de renda, amplie a criação de empregos formais e promova fortes investimentos públicos na infra-estrutura do país em políticas sociais estruturantes.
13 – O Partido deve iniciar mobilizações regionais articuladas com o DN, visando esclarecer a opinião pública sobre os objetivos do denuncismos em curso, inclusive estabelecendo diálogo com aqueles órgãos de comunicação regionais e nacionais, que não estejam inseridos voluntariamente nesta campanha de massificação totalitária da opinião contra o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores. [São Paulo, 19 de setembro de 2005]