Mais uma vez a mídia chafurdou em um caso policial. Construiu um Coliseu em torno do leão e das suas vítimas. Cobrou o ingresso da vendagem e da audiência. Entrevistou a fera, fez o que pôde para despertar e espicaçar a morbidez que habita em cada um de nós. Despojou-se de considerações acerca do que fosse ou não conveniente para ajudar a evitar o pior. Promoveu e divulgou o grande evento. Ao fim, duas adolescentes tombaram na arena. E a cidade enjaulou o leão e artista Lindemberg. Mas ele ainda permanece solto, sob o pêlo de um Antônio ou de um Franscisco, até a data da próxima apresentação.
Para entender a parcela jornalística da responsabilidade pelo desfecho dos crimes cometidos há alguns dias contra as jovens Eloá e Nayara em um condomínio popular de Santo André, na Grande São Paulo, conversei com dois especialistas em combate ao seqüestro. Os policiais pediram para não ser identificados. Eis a síntese do que disseram a este Observatório:
‘Quanto menos gente souber, melhor’
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De modo geral, a presença de repórteres ajuda quando, por exemplo, ladrões fazem reféns durante um assalto em uma loja e querem garantia de preservação da vida para se entregar. As câmeras testemunhariam a rendição e inibiriam a prática de eventuais excessos contra o bando.**
Em casos de ‘extorsão mediante seqüestro’, ou seja, quando o seqüestro é cometido para chantagear em troca de dinheiro ou de alguma outra vantagem, ‘repórteres a tiracolo’ atrapalham as investigações, não apenas por razões operacionais: o movimento e a divulgação podem alertar outros integrantes da quadrilha. ‘A rede de comunicação é grande. Nunca se sabe o número total de envolvidos.’ Conclusão: ‘Quanto menos gente souber, melhor.’**
Em um fato como o de Santo André, de ‘cárcere privado’, repórteres poderiam contribuir se o seqüestrador estivesse decidido a se entregar desde que a ação fosse acompanhada pelos jornalistas.‘Sucessão de erros’
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Neste episódio houve uma sucessão de erros dos responsáveis pela operação: a polícia deveria ter isolado a área e cortado água, luz, alimento, comunicação em geral; só se deveria ter conversado por iniciativa do negociador, não do seqüestrador, que acabou ‘comandando’ as vontades: ‘Um diretor do São Paulo chegou a oferecer uma oportunidade para ele no futebol…’ O carnaval midiático também pode ter influenciado a decisão de Nayara de voltar ao apartamento: ‘Chegaram a prometer curso de modelo para as meninas…’ Os policiais deveriam ter invadido muito antes, o seqüestrador já teria demonstrado estar resolvido a acabar com tudo. ‘Num dado momento, ele pediu ao negociador que fosse substituído por outro, para que esse primeiro policial não fosse cobrado pelo que aconteceria depois, durante a invasão.’**
A combinação entre as transmissões da TV e o não-desligamento da energia elétrica no apartamento pode ter produzido conseqüências imprevisíveis no ânimo do seqüestrador, que ora pode ter-se enxergado, por meio da avaliação de psicólogos convidados pelos programas, como ‘coitado, trabalhador, bom menino, abandonado por um dos pais’, ora como ‘doentio’. ‘Ele estava instável, e muita informação mexe com a cabeça da pessoa…’**
O seqüestrador pôde acompanhar pela TV tudo o que estava acontecendo nas imediações do condomínio, inclusive a posição dos policiais.**
A cobertura exagerada e constante foi um elemento perturbador entre aqueles que deveriam tomar uma decisão: ‘O medo da repercussão de um possível erro atrapalha mais do que o medo de errar.’Ruína física e ruína moral
Por esse conjunto de razões, ou seja, a soma dos equívocos cometidos pelas autoridades e pelos meios de comunicação, aliada ao estado emocional e às motivações do seqüestrador, tudo acabou desmoronando, dizem os dois especialistas.
A ruína física e emocional – acrescento eu – é a parte que cabe tão-somente às vítimas e aos seus amigos e familiares. E a ruína moral, essa que poderia decorrer de um sem-número de ações irresponsáveis cometidas pela mídia e por determinadas autoridades ao longo de tantos anos, só se faz aparente àqueles que se preocupam em mudar para melhor. Os demais envolvidos não se deixam nem se deixarão tocar por essas quinquilharias. A vida e a morte continuam.
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Jornalista