A imprensa oposicionista transformou a concessão de asilo político a Cesare Battisti em novo factóide contra o governo Lula. Tudo soa muito previsível, inclusive o tratamento rasteiro dos fatos, como já virou praxe nos grandes diários, impressos e televisionados. Mas a real motivação desses ataques grosseiros esconde-se na retórica tortuosa com que o noticiário envolveu o episódio.
A decisão de Tarso Genro é juridicamente irretocável porque parte do uso de suas atribuições constitucionais e atende à Lei 9474/97, cujo artigo 31 determina:
‘[Após o julgamento do Comitê Nacional para Refugiados] a decisão do ministro de Estado da Justiça não será passível de recurso, devendo ser notificada ao Conare para ciência do solicitante, e ao Departamento de Polícia Federal, para as providências devidas.’
Portanto, o Conare não é soberano nem inquestionável: mais de vinte decisões suas já foram contrariadas pelo Executivo desde 1998 (cerca de 15% do total). Eis porque a Procuradoria-Geral da República recomendou ao Supremo Tribunal Federal o arquivamento do pedido de extradição de Battisti. O próprio parecer do Conare evitou julgar se os eventuais crimes e as condenações de Battisti foram políticos, aspecto fundamental para o pedido de asilo. Genro supriu essa lacuna.
Asilo a músicos cubanos
Não cabe aqui analisar os detalhes técnicos do processo italiano, tarefa que nenhum veículo empreendeu seriamente – uma abordagem honesta da questão levaria a discutir, por exemplo, se julgamentos sem a presença do réu podem ser decididos a partir de testemunhos contemplados com a delação premiada.
Tampouco vale a pena debater a lisura ou o caráter democrático das instituições italianas, pois nada disso pode ser determinado objetivamente, nem possui qualquer relevância: os fundamentos da democracia conseguem sobreviver ao poder da Máfia? A inevitável subjetividade das decisões judiciais não faz de qualquer julgamento uma atitude política? Os EUA transformaram-se em ditadura ao financiarem um campo de concentração?
A reação pateticamente exagerada do governo italiano atraiu a solidariedade das elites brasileiras, conciliando a arrogância colonizadora com a subserviência do colonizado. Ninguém se pronunciou em dezembro de 2005, depois que o nosso STF concedeu asilo a Pietro Mancini, também acusado de terrorismo na Itália; ou em outubro do ano passado, quando o presidente francês Nicolas Sarkozy negou a extradição da italiana Marina Petrella, que pertenceu às Brigadas Vermelhas.
O governo brasileiro continua sendo acusado pela deportação dos pugilistas cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara em julho de 2007, mesmo que diversas autoridades contradigam oficialmente essa tese, inclusive o então presidente da OAB-RJ, Wadih Damous. A propósito, ninguém menciona o asilo concedido aos músicos cubanos Miguel Ángel Núñez Costafreda, Arodis Verdecia Pompa e Juan Alcides Díaz, membros da banda ‘Los Galanes’, que desertaram em dezembro daquele ano.
Motivações nada inocentes
Mas Battisti não poderia pleitear o tratamento de refugiado, pois ele é considerado ‘terrorista’ pela grande imprensa nacional (o jornalista Sidney Rezende chegou ao cúmulo de compará-lo a Osama bin Laden). E, como sabemos, terroristas não merecem benefícios. Segundo a lógica de George W. Bush, abraçada pelos editoriais, eles sequer possuem direitos.
Eis que chegamos ao cerne da questão. Sabemos que a acepção genérica do terrorismo aplica-se a qualquer pessoa ou grupo, independente dos crimes cometidos, das circunstâncias ou das ideologias envolvidas. ‘Terroristas’ eram os participantes da luta armada que combateu a ditadura militar, mas não os integrantes da resistência às ocupações fascistas durante a II Guerra Mundial. São os guerrilheiros das Farcs, mas não os paramilitares colombianos. São os extremistas muçulmanos, mas não os mercenários a serviço das petrolíferas estadunidenses.
Portanto, o insignificante Battisti é um terrorista apenas porque alguém decidiu imputar-lhe a alcunha tenebrosa do momento. Mas uma simples escolha semântica esconde motivações nada inocentes: o retorno à nomenclatura utilizada pelos militares cumpre um papel estratégico.
Não há coincidência
Criminalizar as militâncias de esquerda, anulando sua legitimidade política, aproxima-as do banditismo comum já estigmatizado pelo noticiário atual. Esvazia, assim, o repertório de valores e as reivindicações tradicionais dos movimentos socialistas (em geral, não apenas das vertentes revolucionárias). E joga um manto de suspeição sobre os combatentes dos anos de chumbo, alguns ocupando cargos de primeiro escalão no governo Lula. Desnecessário lembrar a atuação passada de Dilma Rousseff e suas pretensões eleitorais para dimensionar o alcance dessa manobra.
A luta armada vê-se reduzida ao fanatismo terrorista, como se, assim, as vítimas das atrocidades da ditadura perdessem o direito de exigir a punição dos seus algozes. Como não é possível fazer da tortura e do assassinato instrumentos políticos, todos os antagonistas envolvidos são transformados em criminosos ordinários. Desta forma, a Lei de Anistia beneficiou-os por igual, não podendo ser revista sem acarretar efeitos generalizados.
Os veículos de comunicação que promovem a vilanização histérica de Cesare Battisti apoiaram o golpe de 1964, silenciaram durante o regime, defendem a perpetuação da Lei de Anistia e estão comprometidos com projetos de poder que se beneficiariam do desgaste do governo federal. A pressão midiática sofrida pelo STF no julgamento da constitucionalidade das denúncias do chamado mensalão repete-se, agora, às vésperas de um posicionamento acerca de ações judiciais contra agentes da repressão.
Não há qualquer coincidência nesse histórico.
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Historiador e escritor