O Brasil vem experimentando nos últimos meses uma série de discussões acaloradas sobre vários temas que, inevitavelmente, desembocam em conflitos e geram muito pano para a manga. Aborto, união estável de homossexuais e legalização da maconha são temas atuais que não saem dos media, pertencem ao nosso “mundo da vida”, a todos nós, a sociedade. Acompanhados de interpretações esdrúxulas e reacionárias, muitas vezes esses assuntos acabam sendo escoados para o submundo da ilegalidade, clandestinidade e aberração, ou se preferirem, do pecado. Isso quando não se criam subterfúgios para neutralizá-los “democraticamente”, como é postura de praxe das bancadas religiosas na Câmara dos Deputados.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 deixa expressa a garantia de liberdade de crença, de culto e liberdade de organização religiosa (art. 5, VI da CR), mas também estabelece claramente a separação entre Estado e religião (art.19, I, da CR), sendo essa refém da permissividade da política com a religião. Como exemplo, o art.79, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que prevê que “a Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso”. Afinal de contas, para que consultar a Constituição? Deixai agir a palavra do senhor e, para que não haja dúvidas, exaltai “Deus seja louvado”, como bem é grafado em nossas notas de real.
O Estado brasileiro é hoje mais democrático do que foi em qualquer outro momento do passado, e vive uma fase de mudanças, a passos curtos, enfrentando o que talvez seja um longo [e penoso] processo de laicização. Apesar dos exemplos cotidianos de desrespeito ao Estado laico, avanços acontecem. Na história, o maior deles, sem sombra de dúvidas, talvez tenha sido a possibilidade legal de dissolução da sociedade conjugal, o divórcio, instituído por lei em 1977.
A liberdade de descrença
O que se vê – e o que custa a mudar – é a grande influência das igrejas na vida das pessoas e, por conseguinte, na vida do Estado. Um estudo que será publicado neste mês aponta que, quanto mais desenvolvido o país, maior o número de ateus. Como base de dados, o autor da pesquisa Nigel Barber, cita Suécia, com índices de 64% de ateus na população, seguida por Dinamarca (48%), França (44%) e Alemanha (42%). E, na outra ponta, países como os da África subsaariana, que têm menos de 1% de ateus.
O Brasil não deve, necessariamente, seguir o caminho da “ateização” como verificado nos países citados pela pesquisa. Contudo, deve abraçar o caminho da laicização como meta e como meio de construção de uma realidade social verdadeiramente democrática, onde cada família decida sobre quando e onde matricular seus filhos em cursos oferecidos pelas igrejas, onde não haja mais apropriação privada da coisa pública para a manifestação de crenças pessoais e, não menos importante, onde a liberdade de crença seja também uma liberdade de descrença.
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[Hilbert Reis é estudante de Direito, Ouro Preto, MG]