O jornalismo é dessas atividades que tão importante quanto ‘fazer direito’ é ‘fazer certo’. Esse aparente jogo de palavras ilumina dois lados de um terreno nem sempre claro: a técnica e a ética. Em outras palavras, não basta que o jornalista ofereça produtos e serviços com qualidade se sua postura diante dos fatos, das fontes e dos públicos é ilícita, ilegítima ou eticamente questionável. Talvez por essa razão, quando surgem críticas ao jornalismo e aos seus profissionais aspectos técnicos são abordados considerando-se também as atitudes que estiveram ligadas àqueles resultados. De alguma forma, nessa área, não se consegue descolar ética da técnica e vice-versa.
Como outras atividades profissionais, historicamente, o jornalismo foi consolidando critérios, valores e práticas para definir níveis de excelência técnica. Esses parâmetros foram se construindo ao longo dos anos, em consonância não apenas com as demandas dos públicos, mas também levando-se em conta aspectos comerciais e de uma moralidade pública. Assim também, o jornalismo foi construindo para si uma função social que o legitimasse como narrador cotidiano privilegiado junto à sociedade. Ao que parece, esse pacto com o público – embora arranhado – ainda está mantido, pois ainda convém aos seus signatários. Entretanto, isso não impede que haja críticas severas e cada vez mais frequentes a erros técnicos e a deslizes éticos de jornalistas.
Paulatinamente, as empresas de comunicação e a categoria profissional vêm aperfeiçoando suas ferramentas para aumentar a qualidade do jornalismo. Para melhorar aspectos éticos, no entanto, a velocidade, a intensidade e o empenho desses atores não têm sido os mesmos, ao menos no Brasil.
A difusão de bases éticas para a profissão
É verdade que as incertezas jurídicas em torno da atividade jornalística são tantas que estremecem ainda mais os limites da profissão, inclusive os deontológicos. A decisão do Supremo Tribunal Federal de junho de 2009, que extinguiu a obrigatoriedade de diploma para se obter registro de jornalistas, fragilizou bastante a regulamentação profissional, tornando muito flexíveis as regras para entrada no mercado de trabalho. Os constantes ataques políticos à Lei de Imprensa têm também contribuído para disseminar dúvidas sobre limites de ação para os jornalistas e sobre direitos de resposta para vítimas de abusos. Essas incertezas jurídicas, aliadas à precarização das relações de trabalho (arrocho salarial, instituição de bancos de horas nas empresas, sobrecarga de trabalho, enxugamento das redações…), à falta de unidade da categoria e à uma consequente baixa autoestima têm borrado bastante as fronteiras que ajudam a configurar a profissão de jornalista no país. Há que se considerar ainda outro fator agravante: os muitos impactos e transformações que o jornalismo vêm passando nas últimas décadas por conta de avanços tecnológicos.
Dados os ingredientes e sua perversa combinação, o que temos é uma profissão cercada de indefinições internas ao passo que é objeto cada vez maior das expectativas dos públicos, também cada vez mais ávidos por informação. Uma boa resposta a este momento crítico seria um reordenamento jurídico do setor, tornando mais claras as regras de acesso à profissão, seus limites de atuação e suas responsabilidades. Mas não se limpa esse terreno assim, do dia pra noite.
Diante de mais esse impasse, a reação à crise existencial passa incontornavelmente pelas vias deontológicas. Quer dizer, enquanto não tivermos respaldo jurídico e bases legais bem definidas para o jornalismo brasileiro, precisamos fortalecer nossos instrumentos para a difusão de bases éticas para a profissão. É preciso, portanto, trabalhar por um sistema deontológico jornalístico.
Legitimidade, representatividade e capilaridade
Mas no que ele consistiria? Numa resposta rápida e simples: um conjunto de ferramentas e ações que permitam fortalecer uma ética jornalística capaz de definir a profissão. Um sistema deontológico precisa, por exemplo, de um código de ética nacional, que circule com facilidade, que seja assumido pelos jornalistas, seja conhecido pelo público e tenha reconhecimento das empresas de comunicação. Hoje, existem diversos códigos no país, mas nenhum deles tem esse alcance e legitimidade. Em dezembro de 2010, durante a Conferência Nacional de Comunicação, a ideia de um documento abrangente como este foi debatida, reconhecendo-se inclusive as dificuldades da fabricação de um consenso em torno dela.
Mas um sistema deontológico jornalístico não se sustenta apenas em cima de um código de ética amplo. É preciso também construir uma rede de instâncias que possam identificar infrações éticas, decidir sanções aos faltosos, reforçando ainda os valores positivos da profissão. Hoje, os sindicatos dos jornalistas já contam com comissões de ética, bem como a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Mas em todas as partes, as comissões são pouco conhecidas e sequer conseguem atrair denúncias de falhas deontológicas. Como não há queixas, as comissões reúnem-se muito pouco, o que apequena a sua importância. Além disso, as comissões contam com pouca ou nenhuma estrutura de trabalho; muitas vezes, não conseguem reunir seus membros por falta de recursos. Quase invisíveis, bastante ociosas e muito desaparelhadas, as comissões de ética ficam restritas a desempenhar um papel meramente simbólico. Num sistema deontológico efetivo, elas poderiam não apenas receber denúncias de deslizes e julgar falhas éticas, mas também disseminar uma cultura de boas práticas nas redações. Assim, as comissões de ética assumiriam funções de depuração profissional e de pedagogia deontológica. De maneira prática, seus membros poderiam produzir materiais de orientação, como cartilhas e manuais a serem distribuídos; poderiam visitar ambientes de trabalho para palestras e cursos; e poderiam conduzir fóruns de debate sobre temas afins.
Um sistema deontológico jornalístico nacional se apoiaria, portanto, em um código negociado entre jornalistas, empregadores e público, e numa rede de comissões de ética bem estruturadas e coordenadas, com ações disciplinares e pedagógicas. Um conjunto de materiais de aconselhamento de conduta e para o fortalecimento de valores profissionais poderia ser produzido por profissionais e especialistas; eventos específicos poderiam ser promovidos para motivar a discussão de temas éticos, aproximando jornalistas de fontes e públicos, por exemplo; ações poderiam ser desenvolvidas para integrar organizações interessadas, entidades de classe e setores acadêmicos, que conjugariam esforços para a implementação desse sistema deontológico. Penso que esses atores devem ser protagonistas desse momento porque reúnem, juntos, condições como legitimidade política, representatividade, expertise técnica e capilaridade nacional. Não só. Eles têm alto poder de mobilização de grupos influentes, como formadores de opinião.
Os alicerces deontológicos
Mas é claro que, a despeito de tudo o que foi dito, conceber e implementar um sistema deontológico para o jornalismo brasileiro é uma tarefa tão complexa quanto urgente. É um desafio porque depende do envolvimento de muitos setores e da superação de históricas divergências políticas, conceituais e culturais. É uma necessidade porque a redefinição dos contornos da profissão no país, hoje, passam pela rediscussão de nossos alicerces deontológicos.
Entre o desafio, o desejo e a necessidade, basta saber quanto estamos dispostos a enfrentar essa jornada.
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Professor de Jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS