‘Muitas são as coisas prodigiosas sobre a Terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que o próprio homem. (…) Na criação que o cerca só dois mistérios terríveis, dois limites. Um, a morte, da qual em vão tenta escapar. Outro, seu próprio irmão e semelhante, o qual não vê e não entende.’ (O coro, na peça Antígona, de Sófocles)
Devo a epígrafe a um aluno meu, da graduação, na ECA-USP: Hugo Nogueira Neto. Foi ele quem me chamou a atenção para essa passagem, durante uma aula sobre Antígona, na disciplina de Ética. Desde que comecei a dar aulas regularmente (o começo foi na Cásper Líbero, em 2001), valho-me de Antígona para alertar os estudantes de jornalismo exatamente sobre isso: as nossas dificuldades com o diálogo. Poderíamos mesmo falar na impossibilidade do diálogo. Lá se vão alguns anos, várias leituras e releituras da peça de Sófocles – e essa fala do coro tinha me passado praticamente em branco. Só fui refletir mais sobre ela porque um aluno resolveu lê-la para os colegas durante os debates. Eis aqui mais um dos muitos casos em que os professores aprendem com aqueles a quem deveria ensinar. Aprende-se muito. Eu sou testemunha. Sou prova disso.
Para mim, o tema de Antígona é o não-diálogo. É certo que, em todas as tragédias, por definição, o destino se consuma porque faltou a alguém a habilidade de acolher alguém, porque faltou entendimento, alguma conciliação. A tragédia se impõe sobre o alicerce do que irredutível em cada um de nós. É assim que o destino – ou, se quiserem, o inconsciente – faz valer o seu desígnio. Não há escapatória. A tragédia vem da certeza de que, a certas humilhações, a morte é preferível, de longe. Por isso, enfim, todas lidam com aquilo que por fatalidade sobrepuja o entendimento. Mesmo assim, mesmo sendo esse um traço comum a todas elas, penso que em Antígona o tema do não-diálogo é dominante. Também por esse motivo específico, a sua leitura é altamente recomendável aos estudantes de jornalismo.
Com que lidamos nós, os jornalistas, senão com a possibilidade de estabelecer diálogos? O nosso ofício se resume a isso: somos gente falando sobre gente (e falando com gente que nos fala sobre gente) para muita gente. Dependemos da confiança dos interlocutores, sejam eles as fontes, os objetos do que publicamos ou o público. Sem isso, não se estabelece conversação. Ou pelo menos não se estabelece conversação que preste.
Idéia atropelada
Para ser merecedores – e vetores – dessa rede de confiança, que atinge a envergadura de confiança pública, precisamos ser treinados a respeitar as múltiplas versões dos fatos e das idéias, precisamos contemplar, nos relatos, ângulos diversos, humores antagônicos, dores e alegrias que se desequilibram, mas que devem coexistir. Por dever de ofício, temos de saber ouvir e narrar as coisas de tal modo que inúmeros sujeitos não se sintam excluídos, expulsos da narrativa. Mais recentemente, o nosso compromisso com as condições de diálogo se tornou mais premente. Podemos até dizer que se tornou mais trágico, no sentido pleno da palavra.
Vivemos um tempo em que nada menos que a guerra pode resultar do mau jornalismo. Não precisamos ir longe para verificar essa verdade. Basta ver que a Guerra do Iraque só foi precipitada porque se conseguiu plantar a notícia falsa de que Saddam Hussein estaria às voltas com a fabricação de armas químicas de destruição em massa. Grandes jornais se retrataram por ter veiculado essa informação de modo acrítico, mas, aí, bem, aí já era tarde demais.
Antes era diferente. Antes se dizia que ‘quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade’. Essa expressão, aliás, inspirou um livro histórico sobre a cobertura de guerras, A primeira vítima, do jornalista inglês Phillip Knightley, de 1975. A frase original é normalmente atribuída a um senador americano, Hiram Johnson (1866-1945), mas não encontrei registros que comprovem a autoria. Sabe-se que, em 1928, Arthur Ponsonby escreveu algo bem parecido em Falsehood in Wartime (‘Quando a guerra é declarada, a verdade é a primeira vítima’), e, há dois séculos e meio, na revista The Idler (edição de 11 de novembro de 1758), Samuel Johnson afirmou: ‘Entre as calamidades da Guerra, pode-se citar o declínio do amor à verdade’. Mas não quero aqui me perder em autorias. Importa-me recuperar a idéia. Importa-me recuperá-la para, em seguida, enfatizar que ela, que ainda tem sua pertinência, foi atropelada por outra, da qual temos de nos dar conta.
Compromisso crucial
Antes, como eu dizia, acreditávamos que a primeira vítima da guerra é a verdade. Agora, como bem ilustra o caso do Iraque, entre outros, somos forçados a concluir que a guerra pode ser uma conseqüência direta do desapego à verdade. Sei que, desde sempre, as guerras se faziam preceder de todo tipo de calúnia contra os futuros inimigos e que, portanto, alguns podem alegar que não há novidade alguma nisso que tento mostrar. Mas há. Hoje, toda operação de guerra, antes de seu início, depende da construção de um imaginário que passa, muitas vezes, pelo sacrifício da verdade – e essa construção, cada vez mais, é operada direta ou indiretamente por jornalistas.
Vivemos na era da industrialização daquilo a que podemos chamar de processos que vitimam a verdade com fins políticos, econômicos e, não raro, militares. Eu poderia ir ainda mais longe: na nossa era, uma guerra só é possível se as pontes do diálogo – não mais o diálogo entre os emissários dos reis da Antiguidade, mas o diálogo social – forem bombardeadas previamente. Falei em diálogo social e explico: na Antiguidade, ou mesmo até muito recentemente, esses assuntos poderiam ser decididos entre cúpulas. Hoje não é mais assim. A evolução da legitimidade para uma ação bélica passa necessariamente pelo espaço público e, por isso, a responsabilidade da imprensa nessas questões cresceu tanto. É por isso que afirmo: agora, não é mais a verdade que é a primeira vítima da guerra. É pior: a guerra depende do sacrifício da verdade por antecipação.
Ora, e onde está a verdade nesses assuntos? A verdade não está de um lado ou a de outro, mas na possibilidade de equacionar os pontos de vista, encontrando, para eles, não um meio termo, não uma rendição antecipada, mas canais que lhes permitam conviver. Sem dúvida, existiram na história os casos em que não havia saída além das armas, mas esses casos são cada vez mais raros. A comunicação – com o jornalismo em primeiro plano – pode ajudar a evitar conflitos armados. A imprensa pode fazer muito mais do que tem feito pela paz. Pode fazer muito mais do que julga poder fazer. Daí o compromisso dos jornalistas com o diálogo ter se tornado mais sério, mais crucial, mais trágico.
Valor ético
O mesmo raciocínio vale para as pendengas menores, essas do nosso dia-a-dia (isso ainda tem hífen?). Temos pequenas guerras, guerras igualmente violentas, mas verbais, que dilaceram reputações como quem esquarteja corpos humanos. O gosto pelo combate, um tanto natural, admito, parece animar muitas das vozes que têm acesso ao espaço público. Mas o prazer da batalha, que todos trazemos em nós, pode ser posto acima da busca pelo diálogo quando operamos a comunicação? Eu realmente não consigo entender o impulso de tanta gente em desqualificar os interlocutores. Não enxergam que isso os conduzirá a ilhas de eco para as suas próprias vozes? Vejam-se, por exemplo, alguns blogs que estão por aí: são unidirecionais, não no formato da comunicação, aparentemente ‘interativa’, mas no discurso que promovem. Todos falam a mesma coisa, com a mesma fúria, com a mesma intolerância. Nós deveríamos refletir um pouco.
Falei sobre isso no meu artigo anterior (‘Desaforos entregues em casa‘). Ah, sim, e esse é o ‘gancho’ que me leva a escrever o que escrevo agora (eu deveria ter feito menção a esse gancho logo de início, mas me passou). Eu comentava, precisamente, o grau de desaforo das mensagens que nos chegam da internet, certamente estimuladas pelo alto grau de acidez e brutalidade que prevalece em artigos, sites e blogs. O clima sangrento predomina. Ondas de justiçamento percorrem a rede e os algozes parecem dizer ‘ah, mas foi ele que começou’.
O público hoje é partícipe da confecção das notícias e dos debates – o que é muito bom. Deveria também ser partícipe da ética que deve orientar as interlocuções. O público passa a ter responsabilidades novas e, no entanto, muitas vezes, contingentes expressivos de leitores desprezam qualquer forma de respeito e de interesse pelos outros pontos de vista. Sem isso não há comunicação. Por mim, penso que o público poderia até mesmo ensinar um pouco de diálogo para os jornalistas, mais ou menos como os alunos ensinam os professores, mas não é isso que vem acontecendo, infelizmente.
Insisto: o compromisso com o diálogo, hoje, para nós, é tudo – ou quase tudo. O diálogo deixou de ser apenas uma modalidade discursiva para se converter em um valor ético. Temos de acordar, o quanto antes. Digo isso ainda com alguma energia, embora eu me sinta falando para ninguém, para o vazio, ou para campos de batalha misturados, engalfinhados uns nos outros.
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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP