Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Por uma nova regulamentação

Hoje a regulamentação da profissão de jornalista é feita basicamente por três normas: a Consolidação das Leis do Trabalho (artigos 302 a 316), o Decreto-Lei 972/1969 e o Decreto 83.284/1979, que regulamenta o anterior. A CLT trata basicamente da jornada de trabalho, estabelecendo as cinco horas prorrogáveis por mais duas e o percentual de compensação das horas extras.


O Decreto-Lei 972 define as funções de jornalista, reforça o piso da remuneração definida nas convenções coletivas e estabelece as condições para o acesso à profissão. Entre elas o diploma de curso superior, exigência derrubada, como de amplo conhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal. Por fim, o Decreto 83.284/1979 regulamenta o 972 detalhando alguns de seus pontos. A decisão do STF criou uma insegurança jurídica. Há divergências ainda se o acórdão da decisão da Corte não abrange o conjunto do Decreto-Lei 972, uma vez que ele fala em controle estatal do exercício da profissão.


Também em razão disso, as Superintendências Regionais do Trabalho passaram a adotar metodologias próprias, não necessariamente coincidentes, para conceder o registro aos pleitos de pessoas não diplomadas. O ministro do Trabalho Carlos Lupi afirmou no início de fevereiro a diretores da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que emitiria uma Nota Técnica uniformizando os procedimentos e diferenciando os registros de quem possui o curso superior na área.


Tentativas de reforma na regulamentação


Duas tentativas de reforma merecem registro para o debate. A primeira foi com o Projeto de Lei Complementar 79 de 2004, que propunha a atualização do Decreto-Lei 972/1969. Ela amplia o número de funções que caberiam aos jornalistas, acrescentando, por exemplo, a assessoria de imprensa, e muda alguns aspectos da redação do DL. Outra, ainda em curso, é a Proposta de Emenda Constitucional 33/2009, que acrescenta parágrafos ao Artigo 220 da Carta Magna restabelecendo a obrigatoriedade da formação específica retirada pelo STF.


Nova regulamentação


O debate sobre a regulamentação da profissão de jornalista é urgente. O contexto da profissão mudou, novas realidades buscam se cristalizar. Assim como em outras profissões, os jornalistas sofrem uma dura ofensiva de desestruturação de seus direitos, precarização das relações trabalhistas e ampliação da exploração do seu trabalho, com aumento tanto das jornadas quanto da produtividade e do aproveitamento da informação produzida.


O debate sobre essa regulamentação tem dois pilares fundantes. Em primeiro lugar, considerar que são normas para uma relação de venda da força de trabalho e que, como tal, deve ser protegida para garantir a qualidade de vida dos trabalhadores dessa categoria. Em segundo lugar, entender as características específicas da atividade desenvolvida e o que isso implica.


Tomadas essas duas dimensões, a discussão deve partir das conquistas históricas relativas ao tema. Entre elas, a jornada de cinco horas extensível a sete; as atividades e funções definidas em lei; a compensação das horas extras trabalhadas; e, fundamentalmente, a formação específica como condição de acesso à profissão. Este elemento, vital ao exercício do bom jornalismo, coloca-se na ordem do dia com a disputa pela aprovação das Propostas de Emendas Constitucional no Congresso que restabelecem a exigência. O movimento sindical deve intensificar as pressões para aprovar a mudança neste início de nova legislatura do Congresso.


Mas é preciso ir além. É hora de reformar o Decreto-Lei 972 e o Decreto 83.284/1979, consolidando uma norma atualizada que fortaleça a proteção das relações trabalhistas dessa categoria e o bom exercício do jornalismo. Esse esforço precisa considerar algumas características da atividade jornalística. Uma é a vitalidade dela para a sociedade e para a democracia. A informação correta e que sirva às demandas da sociedade é insumo fundamental para que os cidadãos se conheçam e reconheçam e tomem parte no debate público. Mas, também por isso, o jornalismo vem carregado de responsabilidade pelo seu potencial de influenciar as pessoas e de formar e deformar visões.


Outra característica é sua natureza intelectual. Esse aspecto coloca dificuldades, entre elas a de mensurar a propriedade de determinadas informações e a de controlar a reprodução dos conteúdos elaborados. Mas é preciso tomar cuidado para que elas não gerem ilusões como as propagadas pelos proprietários dos veículos de comunicação, de que o jornalismo seria o ‘reino da liberdade de expressão’. A natureza intelectual não elimina a condição de trabalho remunerado da atividade, nem a verticalidade e as relações de subordinação na definição do produto final.


Relações trabalhistas


Exatamente por isso, a regulamentação precisa assegurar garantias relativas, por exemplo, à contratação, à jornada e à remuneração da categoria. No primeiro caso, a clássica definição da CLT de vínculo empregatício vem sendo insuficiente para impedir o fenômeno da precarização das formas contratuais, especialmente aquela conhecida como ‘pejotização’. A despeito das proibições legais já constantes, uma nova norma deve reforçar a proibição ao exercício do jornalismo sem que seja por carteira assinada, considerado aí como emprego a regularidade da venda da força de trabalho, à exceção de prestações eventuais que devem ser expressamente definidas e limitadas quanto ao número de vezes e às fontes pagadoras. Outra cláusula que contribuiria nesta direção seria o impedimento de que uma empresa jornalística contratasse outra para o serviço fim, de modo a coibir a terceirização.


No que tange à jornada de trabalho, é importante especificar o caráter da prorrogação (as tradicionais duas horas) de modo que ela não seja praticada usando o instituto das horas extras. Da mesma forma, as demandas extenuantes das redações carecem de um freio com limites à excepcionalidade das 9 horas prevista na CLT. [Art. 59 – A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho. §1 – Do acordo ou do contrato coletivo de trabalho deverá constar, obrigatoriamente, a importância da remuneração da hora suplementar, que será, pelo menos, 20% (vinte por cento) superior à da hora normal. §2 – Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de 120 (cento e vinte) dias, a soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de 10 (dez) horas diárias.] Sem isso, a jornada ‘normal’ da categoria continuará sendo de 10 a 12 horas. Da mesma forma, a jornada em dois locais de trabalho emendada (7 mais seguidas de 7 horas em outro emprego) também deve ser combatida, com o estabelecimento de limites e garantias aos trabalhadores de modo efetivo.


Já naquilo que se refere à remuneração, é importante trazer na lei uma referência a um piso nacional que seja parâmetro para as definições das Convenções Coletivas em cada estado.


Em relação às funções, aquelas previstas no Decreto-Lei 972 precisam de urgente atualização. O caso mais grave é a inclusão da assessoria de imprensa, que hoje já representa um nicho muito maior do que as tradicionais redações. Mas essa adoção deve levar em conta os contenciosos com os Relações Públicas do passado, construindo saídas como a divisão das funções e o reconhecimento de atividades de duplo enquadramento.


A adaptação à nova realidade da categoria também deve incluir as atividades relacionadas à internet e ao processamento de informações nas plataformas multimídia e nas redes sociais, ajuste que deve proteger o jornalista do acúmulo de funções (batizado às vezes, simpaticamente, como ‘jornalismo multimídia’) e garantir a remuneração proporcional à atividade realizada e ao produto aproveitado nos veículos das empresas.


Ética e proteção intelectual


Uma das tarefas de uma nova regulamentação deve ser incluir aspectos relativos à ética e à proteção da produção intelectual, hoje quase nada tocadas pelo Decreto-Lei 972. A derrubada da Lei de Imprensa ampliou o vácuo, que acaba colocando o jornalista como único responsável de eventual incorreção cometida sob ordens do empregador. Uma alternativa é a aprovação de bandeira antiga do movimento sindical da área de institucionalizar um código de ética. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, aprovado no Congresso Extraordinário de Vitória em 2007, é base essencial para um texto que venha a ser formulado.


Entre as cláusulas do documento, vale ressaltar as (a) sobre a obrigação quanto à veracidade da informação, (b) quanto ao respeito à dignidade das pessoas e aos direitos humanos, (c) acerca da cláusula de consciência e da proibição a qualquer forma de assédio moral, (d) no tocante ao sigilo da fonte e aos métodos de obtenção das informações.


Junto a elas, merece atenção o tema do conflito de interesses. A vedação expressa da cobertura por profissionais de temas envolvendo órgãos nos quais eles são contratados é uma das questões. Outra é a relação promíscua entre veículos e anunciantes, e o uso da figura de jornalistas como garotos-propaganda.


Enquanto isso


Esse esforço deve ser abraçado pelos jornalistas, com medidas de curtíssimo, curto e médio prazos. Mas enquanto tais alterações não se concretizam, o movimento sindical da área não pode ignorar a emergência de algumas ações. Uma primeira é exigir que, neste cenário de desregulamentação, pelo menos a concessão de registro pelo Ministério do Trabalho e Emprego não prescinda de critérios mínimos, tais como a comprovação de vínculo empregatício na carteira de trabalho ou contratos não precários, atestados por empresas jornalísticas e/ou outras; comprovação do tempo mínimo de três anos de exercício profissional; submeter-se a provas de conhecimento do Código de Ética dos Jornalistas; apresentar portfólio de trabalhos executados.


Uma segunda é considerar o crescimento do contingente de trabalhadores com o registro profissional mas sem formação específica. Essas pessoas estão expostas às mesmas contradições que os diplomados e mantêm uma parte importante da identidade que nos constitui enquanto categoria.


Caso a PEC seja votada no Senado, a sindicalização de pessoas em curso superior específico deixa de ser uma questão, pois seria restabelecida a obrigatoriedade reconhecidas as situações precárias configuradas desde o julgamento do STF. Mas caso essa expectativa não se concretize, os sindicatos e a Fenaj correm riscos de abandono de seu papel de entidade de classe se mantiverem a recusa ao acolhimento dessas pessoas.

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Secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do DF, trabalha como editor de texto na redação da TV Brasil em Brasília. Com contribuições da coordenação do movimento Luta Fenaj.