Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Premissas, práticas, profilaxias

Algumas premissas do debate sobre a prisão do zagueiro Leandro Desábato, do Quilmes:


1. Toda a imprensa brasileira noticiou com justa repulsa as recentes manifestações racistas contra jogadores negros, inclusive brasileiros, das torcidas italianas e espanholas. Antes, na Copa do Mundo de 2002, nossa imprensa noticiou e condenou as atitudes racistas de jogadores brancos contra negros na seleção da Holanda. Documentários mostram que desde priscas eras nossos jogadores são vítimas de racismo. Nem Pelé escapou.


2. No Brasil, a prática do racismo é alvo de combate formal e informal. Mesmo com relutância, aos trancos e barrancos, parte crescente da sociedade aprende ou a se comportar ou a rejeitar as manifestações de racismo. Isso porque, no artigo 5° da Constituição Federal, o inciso 42 estabelece que a prática do racismo é crime inafiançável. Trata-se da chamada Lei Caó, ou Emenda Cão, que, na Assembléia Constituinte, após muitas manobras de rejeição, acabou aprovada em separado e obteve mais votos do que o conjunto de toda a Constituição (o PT se absteve da votação final da Carta, mas votou em peso a favor da Lei Caó). Caó era o então deputado do PDT-RJ Carlos Alberto Caó.


Escreveu Ulisses Guimarães sobre a lei:




A Assembléia Nacional Constituinte, ao aprovar a emenda de autoria do deputado Carlos Alberto Caó, em sessão por mim presidida a 2 de fevereiro de 1988, adotou decisão histórica, sem precedente na vida da República, que assentará as bases institucionais para afirmar o caráter heterogêneo, plurirracial e pluricultural do Estado, da Sociedade e da Economia brasileira. A emenda Caó, dispondo que ‘a prática do racismo constitui crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei’, obteve uma ampla votação, 520 votos favoráveis, 2 contrários e uma abstenção (…).


A Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, regulou o dispositivo constitucional, estabelecendo pena com variação de 1 a 5 anos de reclusão para os infratores. A ONU elogiou os mecanismos de combate ao racismo presentes na lei.


3. Um emaranhado confuso de sentimentos rege a percepção que os brasileiros têm dos argentinos. Para alguns, mera ‘rivalidade’ entre vizinhos, excitada nos eventos esportivos pela emissora de TV dominante no Brasil; para outros, admiração mesclada de inveja, que irriga um complexo brasileiro de inferioridade (e suas implicações). Seja o que for, inter-relações conflituosas infelizmente pouco estudadas por nossos antropólogos sociais.


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Temos, portanto, na equação: nossa imprensa percebe e condena o avanço – escancarado nos estádios de futebol – do racismo no mundo, fruto do ultraconservadorismo crescente, e nada é mais justo. Ou o racismo só seria condenável contra os ricaços do esporte? O Brasil tem leis de combate ao racismo, e a polícia as cumpriu ao prender um infrator. Por fim, como os brasileiros têm preconceito evidente contra os argentinos, para dar certo bastavam cuidado e contenção na cobertura. Parecia tudo muito claro. Então, o que complicou um problema de clareza cristalina? Simples: o charlatanismo marrom no rádio e na TV rasteiros, o sensacionalismo na imprensa popular e o reducionismo na imprensa séria.


O charlatanismo nem mereceria comentário, não fosse o peso de bigorna que exerce sobre torcedores pobres, deseducados, massa abandonada nas periferias, governo após governo. Nada têm, nada retêm, a não ser a mensagem desses diabólicos gurus do rádio, velhos trambiqueiros, charlatões com ‘carteira de jornalista’ que ocuparam a chamada ‘crônica esportiva’. Expulsos das redações nos anos 1950 e 60, seus remanescentes (e herdeiros) apropriaram-se do rádio esportivo. Vivem de picaretagem. Quando não incitam violência, ódio, intolerância, abrem a boca para vender sardinha. Ajudaram a transformar o futebol em guerra de gangues, afastaram as famílias dos estádios. Acirram o ódio entre times brasileiros – estrangeiros nem se fala. São poderosos. As forças da lei comem na mão deles: nas entrevistas, as respostas de horror são as que eles querem ouvir.


Parte desta banda podre da ‘crônica’ se refestelou na TV. Produz programas de qualidade sinistra. Também só abre a boca para vender sardinha ou incitar o ódio. A diferença com o rádio é que vemos na tela suas veias saltadas. Pois esta gentalha toda se dividiu: sem idéia do que seja a luta contra o racismo, muito menos do papel social da imprensa, metade pediu o linchamento de Desábato por ser argentino (querem morte no próximo encontro da Libertadores), metade ridicularizou o delegado que fez a prisão, depois humilhou o atacante Edinaldo Batista Libânio, a vítima, e como sempre vilipendiou a lei.


E a imprensa popular? Manchetes sensacionalistas com a palavra ‘racismo’ em letras garrafais. Em casos menos célebres não reagem tanto, mas é futebol, e contra os argentinos, ah, vamos aproveitar. Nas páginas internas, cobertura até decente e cuidada, mas o sensacionalismo na capa vende.


Engano seu, Dieguito


A mídia dita ‘séria’ saiu-se muito bem, nesta modesta opinião: 90% das matérias dos telejornais, naquela noite (tirando a estranha ausência do assunto no Jornal da Globo), e nos jornais, nos dias seguintes, foram informativas, objetivas. Primeiro, porque a maior parte fez o dever de casa, com a necessária associação dos fatos a ocorrências pregressas de racismo nos esportes. Isso tem que ser feito sempre, não há saída possível, é papel da imprensa. Exige-se que a mídia mostre ao leitor que a história não começou naquela noite no Morumbi.


Até porque o leitor sabe, só precisa ser lembrado. Documentário recente, Pelé Eterno, de Aníbal Massaini, registra manifestação racista ocorrida há 42 anos. No filme, Pelé reproduz o coro que ouvia da torcida do Boca Juniors, na Bombonera, final da Libertadores de 1963: ‘Pelé, hijo de puta, macaquitos de Brasil’. Nossa imprensa precisa se encher de ‘brios’? Não. A nossa, quando quer, é uma imprensa madura. Pode até mostrar que não somos melhores que ninguém. Jornal algum (que os injustiçados perdoem) comentou o coro desalmado que perseguia o goleiro Júlio César, do Flamengo, logo após seu casamento. Não se tratava de racismo, mas era ofensa moral gravíssima, e cabia à imprensa o dever pétreo de denunciar (para educar) as torcidas animalescas que cantavam aquela paródia.


Esta é a deixa para o reducionismo dos próceres de nossa imprensa esportiva. E até dos leitores, que pena. ‘Futebol é assim mesmo’; ‘Isso é esporte de homem’; ‘O delegado queria se promover’; ‘O secretário reagiu porque é sãopaulino’; ‘Minha mulher me chama de neguinho, então vou processá-la’; ‘Coitado do rapaz, nem sabia que racismo é crime no Brasil’; ‘Grafite devia processar é quem lhe pespegou este apelido’. Como se o gramado aceitasse tudo, como se esporte feminino suportasse intolerância, como se cumprir um dever só valesse no escurinho, como se secretário corintiano nascesse racista, como se intimidade fosse agressão, como se desconhecimento da lei justificasse crime, como se apelido equivalesse a humilhação.


Que o leitor cheio de adrenalina pense assim ainda se entende. Mas a imprensa é sofreada pela informação e a ética – tem que se comportar, promover o bem, a cidadania. Se o racismo é uma ignomínia, se a lei o coíbe e temos maturidade para superar nossas diferenças com los hermanos, vamos reagir como se deve. O correspondente do Globo em Londres, Fernando Duarte, escreveu na sexta-feira (15/4), em pequena e esclarecedora matéria intitulada ‘Exemplo brasileiro’, que casos do gênero na Europa têm recebido panos quentes. Nossa imprensa não pode entrar nessa. Sua tarefa é prestar esclarecimento sobre a natureza do racismo, denunciar o racismo, cobrar medidas legais contra o racismo, colaborar para a eliminação do racismo – jamais colocar panos quentes. Soa a sermão franciscano, mas é trabalho de formiguinha que só a imprensa pode cumprir.


Racismo não pode continuar tema de xingamento nos gramados – ou em qualquer parte. Não é fácil fugir das armadilhas, é verdade. A edição online do diário argentino Clarín, por exemplo, não conseguiu: duas míseras palavrinhas prejudicaram o trabalho do jornalão nesse caso. Ao reproduzir declarações de Diego Maradona a uma rádio na noite de 15/4, o jornal de Buenos Aires não resistiu à tentação. ‘Estamos misturando o futebol com um montão de coisas que nada têm a ver’, disse Maradona. O Clarín então soltou as duas palavrinhas comprometedoras: ‘De fato…’ O grande astro continuou: ‘No calor da partida se diz qualquer coisa’. Cá pra nós, friamente, apesar dos complexos etc. e tal, o Clarín bem que podia ter acrescentado: ‘Engano seu, Dieguito. No Brasil, não mais’.