Sendo parte dessa questão da anistia federal, tenho algo a acrescentar ao noticiário recente. E, já que o acesso à grande imprensa permanece bloqueado para mim, recorro de novo ao Observatório da Imprensa. Gostaria que minhas ponderações chegassem ao cidadão comum. Tenho a esperança de que os colegas me leiam aqui e façam algo para corrigir essa situação. Sinto-me como se fosse o último censurado, em plena democracia.
A direita já fez muita campanha contra a anistia aos ex-presos políticos, argumentando que não cabem reparações para quem lutou uma guerra e perdeu. É a posição, por exemplo, do coronel Passarinho, que nada fez como ministro do governo Médici para evitar assassinatos e tortura.
Ora, não se pode colocar no mesmo plano os golpistas que derrubaram um governo democrático, suspendendo as garantias constitucionais e cometendo todo tipo de atrocidades, e os resistentes que travaram uma luta desigual contra a tirania. Como participante que fui dessa ‘guerra’, posso afirmar: não passou de um massacre. O poder de fogo verde-oliva era infinitamente superior.
Lamento e fico envergonhado pelos excessos cometidos pelo nosso lado, como a bravata pueril de se lançar um carro com explosivos na direção de um quartel e acabar mandando pelos ares um menino que fazia o serviço militar. Mas, ainda assim, é algo bem diferente de organizar-se um antro de torturas com financiamento de empresários e a participação de militares e policiais civis, conferindo-lhe o papel principal no combate às organizações revolucionárias, embora não tivesse existência legal. Foi assim a Operação Bandeirantes nos primeiros tempos: tinha autoridade incontestável sobre o Dops e não prestava contas a ninguém. Quem caía nas mãos da Oban sabia que o(a) poderiam matar e simplesmente dar um sumiço no corpo.
E todos que foram presos, torturados, assassinados e dados como mortos ‘resistindo à prisão’? O caso mais notório é o de ‘Bacuri’, que, ao ser retirado da cela, gritou aos companheiros que o estavam levando para a morte.
Carreira comprometida
Além disso, não estávamos apenas nas mãos de torturadores e assassinos; eles eram também ladrões, o que pouca gente sabe. Quando cheguei ao DOI-Codi da Rua Barão de Mesquita (RJ), me roubaram até os óculos. Dias depois, um major reparou que eu tinha dificuldade para ler e perguntou o motivo. Quando respondi, ele se enfureceu: ‘O Exército Nacional não rouba óculos de ninguém!’ Mais tarde, entretanto, me levaram ao oculista…
A PE da Vila Militar, que perdera o direito de atuar contra as organizações armadas por causa da morte sob tortura de Chael Scherer, queria de qualquer maneira recuperar essa prerrogativa, de olho nos despojos dos prisioneiros: dinheiro, veículos, armas, máquinas de escrever, objetos de uso pessoal. Não conseguiu e, como o soldo já não bastava para a equipe, resolveu expropriar contrabandistas da região. Houve troca de tiros e os militares acabaram presos, em 1974.
Sargentos, cabos e soldados foram expulsos do Exército e entregues à Justiça comum. Os oficiais foram inocentados (para salvar as aparências), mas viram sua carreira definitivamente comprometida. O capitão Ailton Guimarães Jorge pediu baixa e foi capitanear o jogo-do-bicho. O tenente Aylton Joaquim, um dos 10 piores torturadores da ditadura segundo o Tortura Nunca Mais, e citado pelo Elio Gaspari como o professor que ministrou curso de tortura a outros militares, acabou visto pelos colegas como a vergonha da farda. Já o era, por outros motivos.
Critérios discutíveis
Não há como comparar os dois lados, nem fundamento nenhum para negarem-se reparações a quem teve sua vida prejudicada, arruinada ou tirada por essa malta.
Como essa postura era indefensável, agora os inimigos da anistia passaram a questionar os valores elevados de algumas pensões concedidas, como forma de desqualificar todo o processo. Mas, omitem que:
**
as anistias milionárias foram bem poucas, nem uma dezena;**
a reparação se refere, principalmente, a direitos atingidos entre 40 e 30 anos atrás, sendo um absurdo que se tarde tanto a dar alguma compensação a pessoas que perderam tudo ou quase tudo na vida;**
e, não bastasse o atraso com que o Estado acordou para o cumprimento desse dever, o programa não tem verbas suficientes e marcha com uma lentidão exasperante (ninguém publica a lista dos que já morreram sem receber o benefício).Os critérios adotados também são os mais discutíveis. Além de tudo o que já se falou sobre tratamento privilegiado a políticos, celebridades, sindicalistas etc., acrescento outro dado: quem perdeu emprego por perseguição política pode receber uma pensão vitalícia, enquanto quem era estudante mas ficou com sua capacidade de trabalho comprometida pelo resto da vida, só recebe indenização em parcela única.
Paradigma
Foi o que aconteceu comigo. Provei que minha audição ficou prejudicada para sempre por terem me estourado o tímpano e que uma exposição negativa a que fui coagido sob ameaças e tortura me tornou alvo de discriminação e preconceitos também para o resto da vida. O próprio relator reconheceu que eu fui duplamente atingido pelo arbítrio. Mas, pelas regras, eu só poderia receber a indenização. Talvez isso seja revertido na apelação ao plenário.
Quando veio à tona a intenção do governo federal de fixar um teto para as reparações, procurei a imprensa para relatar o meu caso. ‘Já que se evidencia tanto o fato de algumas pessoas terem sofrido pouco e recebido muito, seria justo mostrar também que há quem tenha sofrido muito e recebido pouco’ – eu disse. Em vão, nada foi publicado.
Finalmente, quero lembrar que as anistias milionárias criaram um paradigma e a igualdade de todos perante a lei será atingida se o governo fixar um teto apenas para as reparações vindouras. Haverá enxurradas de ações na Justiça, com forte probabilidade de êxito. Ou se revê todo o processo ou se concede a todos os casos semelhantes o mesmo tratamento dado ao Cony.
******
Jornalista desempregado e ex-preso político com lesão permanente decorrente de tortura na PE da Vila Militar em junho/1970; espera sua anistia desde outubro de 2001