Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Proibições do ‘dotô coroné prefeito’

Na madrugada de 13 de dezembro de 1968, o jornal O Estado de S.Paulo foi apreendido pela Polícia Federal. Poucos exemplares chegaram às bancas naquele escuro alvorecer. Caía uma longa noite sobre o Brasil com data marcada. Era decretado o Ato Institucional número 5. É curioso que o primeiro não tem número. Nem os militares queriam fazer o segundo. Mas os filhotes se multiplicaram, sendo o AI-5, como ficou mais conhecido, o pior deles.

Julho de 2009, mais de quarenta anos depois: o mesmo jornal é proibido de publicar o que apurou, agora em plena (?) democracia, não mais por censura do Executivo, mas do Judiciário.

Vamos a outros parâmetros. José Simão não pode escrever sobre a atriz Juliana Paes, assim como Paulo Francis não pôde escrever sobre o senador Eduardo Suplicy. Os dois casos se deram um bom tempo depois de passada a ditadura militar.

Nenhuma diferença faz para os leitores de O Estado de S.Paulo lerem receita de bolo ou versos de Os Lusíadas na primeira página, como nos tempos da ditadura, e ficar sem saber o que a Polícia Federal, agora a serviço da democracia, liberou sobre os escândalos do Senado. O resultado é o mesmo. Os leitores foram fraudados, esbulhados, ou outro termo jurídico apropriado a definir com precisão o direito que lhes foi surrupiado. Ou temos que trabalhar com a hipótese de que a mesma instância que antes proibia a publicação de dados factuais agora libera coisas indevidas? Se assim for, a culpa é do mensageiro?

O poder tem algo de insano

O Judiciário foi a instância a que recorreram, quase sempre com êxito, apesar dos percalços nas primeiras etapas, os escritores perseguidos do período pós-64, que ali procuraram o remédio para os males do autoritarismo. Agora, o Judiciário atende a interesses particulares contra o interesse público?

O caso-síntese foi o de Rubem Fonseca, cujo livro Feliz Ano Novo, proibido em 1976, somente veio a ser liberado em 1989. Os prejuízos para autor e editora – mas, principalmente, para o público – foram incalculáveis. A remuneração concedida não contemplou todos os prejuízos. A censura tem efeitos que podem ser reparados, mas tem alguns irreparáveis para toda a vida, que às vezes azucrinam também os descendentes de quem foi censurado.

Disso estava tão certa já a avó de Dom Pedro I que, na sentença da devassa, estendeu as penas aos descendentes de José Joaquim da Silva Xavier, herói de nosso primeiro projeto de independência política. Creditaram o exagero à demência de Dona Maria I, a Louca, mãe de Dom João VI. Mas o poder tem em si mesmo algo de insano, que é preciso conjurar com controles apropriados.

A Sucupira de Dias Gomes

Outro dia, o presidente do STF, Gilmar Mendes, ameaçou chamar às falas o presidente Lula. Indevidamente, como ficou claro. Por que está demorando tanto a chamar às falas os censores de toga? É verdade que também o presidente Lula, em 2005, quis expulsar do Brasil o jornalista americano Larry Rohter, do New York Times, aliás o primeiro a registrar, ainda em 1978, notícia amplamente favorável ao então líder sindical no jornal Washington Post, onde trabalhava.

A censura, como se vê, é norma, e não exceção, no Brasil. Está ali na prateleira para qualquer eventualidade. E é um tiro pela culatra para quem dela lança mão para calar o outro. Voltará sempre com mais vigor a força da palavra que, uma vez levantada a proibição, brilha em todo o seu esplendor, o esplendor da verdade.

Do contrário, o Brasil se transformará na Sucupira de Dias Gomes, onde o ‘dotô coroné prefeito’ concentra todos os poderes, sendo o mais problemático justamente o quarto poder, difícil, para não dizer impossível, de ser controlado.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)