Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Propaganda oficial, campanha eleitoral

No sábado, dia 2 de janeiro, leio uma notinha na coluna ‘Painel’¸ da Folha de S.Paulo:




Tira-gosto. O telespectador de São Paulo viu, na passagem do ano, uma espécie de trailer da campanha eleitoral. Revezam-se no horário nobre um comercial do governo Serra sobre realizações nos transportes e outro do Banco do Brasil sobre conquistas recentes do país que, na prática, funciona como propaganda do governo federal.’


Chamo a atenção para duas constatações presentes na nota. A primeira: há um sinal de igual entre propaganda de um banco público (o Banco do Brasil, no caso) e publicidade de governo. A segunda: há outro sinal de igual entre propaganda de governo (o governo Serra, no caso) e campanha eleitoral propriamente dita.


A nota do ‘Painel’ nem discute nada sobre isso. Parte simplesmente da constatação inequívoca de que a avalanche de propagandas oficiais que vimos na TV, no apagar das luzes do ano de 2009, é um ‘trailer’ do que veremos no horário eleitoral de 2010. As duas coisas são uma coisa só, ou, mais exatamente, são a antecipação uma da outra. E a nota do ‘Painel’ tem toda a razão. É isso mesmo.


Em textos anteriores, tanto aqui, neste Observatório, como em alguns livros, já apontei a transformação da comunicação de Estado num mero prolongamento dos filmes partidários da campanha eleitoral. Agora, noto que a percepção do óbvio – porque estamos diante de um óbvio descarado – vai se tornando disseminada, vai se tornando parte do senso comum da política pátria. A propósito, esse óbvio é um óbvio mais que ululante: ele é petulante na usurpação que representa. Comunicação de Estado ou de governo não deveriam jamais assimilar o linguajar do proselitismo dos candidatos em campanha, mas foi o que aconteceu entre nós. O dinheiro público, com a desculpa de atender ao interesse público, financia hoje verdadeiros palanques eletrônicos a serviço dos políticos que estão no poder.


É por isso que a publicidade governamental é um ‘trailer’ do horário eleitoral.


Tudo em nome do cidadão


Qual a idéia central que dá legitimidade aos comunicados oficiais dos poderes da República – o Judiciário, o Legislativo ou o Executivo? Que fundamento democrático existe nessa prática? A resposta seria simples, ao menos em tese.


Os dirigentes dos poderes públicos em geral, e os governos de modo específico, anunciam para levar ao cidadão a informação que se supõe de interesse público. Eles não dizem que anunciam porque gostam de aparecer, nunca, jamais. Não dizem que anunciam para alardear aquilo que consideram suas grandes obras. Não, dizem que apenas anunciam para prestar contas. Afinal, argumentam, trata-se de um direito do cidadão.


Assim, usurpam um postulado central da democracia em proveito próprio. Esse postulado ou esse princípio está na base de toda a legislação a respeito. Tanto é assim que a prática da autopromoção, quando comprovada, é passível de punição. Oficialmente, as autoridades compram inserções comerciais em veículos de grande circulação com a justificativa – ou com a mera desculpa – de que, assim, estão dando satisfações ao público. E assim caminha a desumanidade da nossa comunicação pública.


O direito do cidadão à informação, de um lado, e o dever da administração pública de assegurar a transparência de seus atos, de outro, constituem os dois lados da mesma moeda de uma grande desculpa esfarrapada: o ocupante do poder público alega que anuncia na TV (e no rádio, na internet, nos jornais, nas revistas etc.) para atender o direito à informação do público e para ser transparente. A partir daí, julga-se com salvo-conduto para toda espécie de louvação em causa própria.


Pense bem: que interesse público – interesse cujo titular seja o cidadão, o eleitor (não o governante ou o político) – vem sendo atendido por esses anúncios que a gente viu, às toneladas, na semana de festas do final de dezembro? Qual o interesse público foi contemplado por uma peça publicitária que promete para o fim de 2010 a inauguração de uma estação de metrô? Qual o interesse público atendido por um filmete que fala que bem do povo brasileiro?


Nenhum.


O interesse atendido é quase sempre um só: o interesse de quem governa. Que, por definição, é um interesse parcial, é partidário, não é interesse de todos, não é interesse comum. O interesse do governante é o interesse de ficar bem na foto – interesse, enfim, que não tem nada a ver com o interesse do cidadão.


A publicidade oficial é aquela que se faz em nome do cidadão – e contra a cidadania.


O maior anunciante do Brasil é o poder público


O mercado publicitário brasileiro apresenta índices alarmantes de estatização. A propaganda de governo se converteu numa indústria próspera, agigantada, em crescimento galopante. Ou ululante. Ou petulante. A fatia de publicidade comercial paga com verba pública é volumosa. Seu market share, como dizem os profissionais do ramo, só faz crescer. Vamos passar por alguns números, rapidamente, apenas para que se tenha uma idéia, ainda pálida, imprecisa, do peso do dinheiro público nesse mercado. Não é nada desprezível.


** Segundo a Mídia Dados, um extenso volume editado pelo Grupo de Mídia São Paulo, o investimento publicitário no Brasil mais que dobrou de 2001 a 2008: passou de R$ 10,7 bilhões a R$ 23,8 bilhões. Era de R$ 21,1 bilhões em 2007. Atenção: o levantamento leva em conta a tabela cheia dos veículos, ou seja, a tabela sem descontos. O volume de dinheiro que circula nesse mercado é necessariamente menor, mas, mesmo assim, temos aí uma boa idéia das proporções e da escala de grandeza.


** Em 2008, as Casas Bahia foram o maior anunciante, com inserções avaliadas em R$3,075 bilhões. Depois dela, veio a Unilever, com R$1,8 bilhão.


** Os chamados Serviços Públicos e Sociais (onde ficam, geralmente, os anúncios de governos) subiram de R$ 2,26 bilhões em 2007 para R$ 2,77 bilhões em 2008, saltando da nona para a oitava posição.


** O governo do Estado de São Paulo foi de R$ 59,3 milhões em 2007 para R$ 158,3 milhões em 2008. É terceiro colocado no ranking dos Serviços Públicos e Sociais. Fica atrás apenas do Ministério da Saúde e do MEC.


** Se somados, os anúncios do governo federal (aí considerados apenas aqueles diretamente vinculados à Presidência da República), com R$ 149 milhões, o MEC, com R$ 180 milhões, o Ministério do Turismo, com R$ 47 milhões e o Ministério da Saúde (R$ 252 milhões), bateriam na casa dos R$ 628 milhões. Sem falar nos ministérios da Defesa, na Marinha etc.


** Para comparar: em 2007, o governo federal totalizava R$ 83,6 milhões. Foi para R$ 149 milhões em 2008. O Ministério da Saúde foi de R$ 129,6 milhões para R$ 252 milhões. Também aqui é preciso lembrar que nem todas as inserções de governo são pagas: algumas são veiculadas graças a acordos de cortesia entre as emissoras e o Estado brasileiro.


** A Petrobras, com R$ 446 milhões em 2008, é a 16ª maior anunciante do mercado. A Caixa Federal é a oitava, com R$ 675 milhões. O Banco do Brasil fica na 17ª posição, com R$ 435 milhões.


** Se somássemos as estatais federais aos maiores ministérios e à Presidência da República, veríamos que o total ultrapassaria com folga a Unilever.


Todo esse dinheiro para quê? Para financiar, como bem disse o ‘Painel’ da Folha, o ‘trailer’ da propaganda eleitoral.


Dize-me que língua falas e te direi quem és


Chegamos, agora, a um aspecto próprio da linguagem da publicidade. Melhor dizendo, chegamos aqui a um ponto em que nos toma de assalto um outro óbvio ululante: o óbvio de que, no Brasil, o discurso publicitário gerou um ramo que ganhou autonomia, e o nome desse ramo é, no mais das vezes, propaganda política. Trata-se de uma especialização: um novo campo, um novo sistema, um novo universo. O linguajar dessa publicidade eleitoral é próprio. É um estilo próprio. Um conjunto de valores próprio. Uma estética própria. A propaganda política, mais do que uma indústria independente e milionária, é um território à parte na linguagem publicitária.


As evidências são incontáveis, além de incontestáveis. As agências que assumem as contas das diversas instituições que pagam pela publicidade de governo são as mesmas que vendem seus serviços para os partidos em temporadas de campanha política. Quando as agências não são oficialmente as mesmas, as equipes são as mesmas. As pessoas são as mesmas. A técnica é a mesma. Os roteiros são os mesmos. Por isso, quero dizer, também por isso, a publicidade das campanhas políticas e as peças de propaganda de governo parecem continuação uma da outra. Elas falam a mesma, a mesmíssima língua.


Não se pode, nesse caso, diferenciar um governo de outro. Todos, indistintamente, praticam a mesma usurpação de usar dinheiro público para advogar em causa própria. Todos fazem campanha eleitoral fora do período eleitoral. Todos incorrem nesse esporte nacional que é o patrimonialismo comunicacional para promover, mais do que a si mesmos, a figura do continuísmo.


Por tudo isso, a nota do ‘Painel’ está certa.

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Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP; autor, entre outros, de Sobre ética e imprensa e Em Brasília, 19 horas