Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Propaganda perniciosa

Quando se fala em propaganda, logo vêm à mente imagens idealizadas de cartazes publicitários, outdoors, encartes de lojas, além da publicidade veiculada na televisão. Em se tratando de medicamentos, a propaganda frequentemente vem veiculada nos encartes das drogarias, que são distribuídos com os jornais ou entregues diretamente em nossas caixas de correio ou pelas lojas do bairro. Mesmo com os avisos sobre os perigos da automedicação impostos por lei, o que fica é a mensagem que o consumidor tem à sua mão, para uso em qualquer momento, medicamentos seguros e que, salvo quando o efeito desejado não é alcançado, é que se deve procurar o médico.

Pior, impossível? Não exatamente… Há ainda uma forma de propaganda mais perniciosa porque além de desinformar o consumidor, o confunde. É aquela que não parece propaganda e que se mescla com os demais textos que deveriam ser informativos. Essa propaganda costuma aparecer como reportagem de jornal ou artigo científico. O consumidor pode desconfiar de um determinado produto anunciado como cura para certas condições de saúde. Isso não acontece quando, ao invés de promover o uso de um produto específico, a propaganda disfarçada de reportagem ou artigo científico difunde uma ideia e é sustentada pela credibilidade do veículo que utiliza. Não se proíbe uma ideia. O que é possível fazer é convencer que a ideia era equivocada a partir de um árduo trabalho. A ideia é, essencialmente, de que há uma cura para todas as doenças, mesmo as incuráveis. Nesse caso, a ideia é de que a cura está a caminho, próxima e vindo rapidamente.

Há poucas semanas, uma reportagem no jornal O Globo (21/set/2010, pág. 32) abordou o suposto tema do conflito ético nos ensaios clínicos, lançando a pergunta sobre a eticidade de submeter doentes a tratamento com placebo enquanto outros seriam submetidos ao tratamento ‘com o medicamento’. Para um adequado debate sobre os ensaios clínicos seriam necessários, no mínimo, longos argumentos em epidemiologia, estatística amostral, metodologia científica e bioética. Contudo, observar apenas os elementos de construção do texto basta para evidenciar o que faz dessa ‘reportagem’ um verdadeiro material de propaganda.

Comparação eticamente condenável

A pergunta está mal formulada e, começando de tal forma, a ‘reportagem’ termina alternando desinformação com ideologias econômicas sobre a regulação do mercado. Não há, necessariamente, conflito ético no desenho experimental para que sua eticidade seja questionada. Para determinados estados de saúde, não há tratamento conhecido e, portanto, não há como fazer outro tipo de comparação. Se não há tratamento, então nenhum terá eficácia comprovada e seria antiético, aí sim, comparar um medicamento em teste com um padrão que, de fato, não tem eficácia comprovada. O pesquisador teria, inclusive, a liberdade de escolher como padrão um tratamento que reconhecidamente piorasse o estado de saúde do doente. Melhor, portanto, comparar com nenhum tratamento ou, sendo possível, com placebo. Fazendo isso e informando o paciente o que se passa dentro do experimento e com ele próprio, isso sim, é conduzir eticamente um ensaio clínico quando não há alternativa terapêutica.

Para os estados de saúde em que há tratamento medicamentoso, a comparação com placebo é, por si só, condenável. Novos medicamentos deveriam ser comparados com o tratamento de primeira escolha – porque não seria negado tratamento ao paciente sujeito da pesquisa alocado no grupo controle e, além disso, se o medicamento em teste apresenta melhores resultados que um placebo, esse resultado não explica se o medicamento em teste traz benefícios reais e inovadores frente às opções já existentes no mercado. Nesse caso, a comparação com placebo seria eticamente condenável e moralmente questionável, já que seus resultados, muito provavelmente, não esclareceriam adequadamente nem os agentes reguladores, nem o consumidor leigo sobre os novos e reais benefícios desse suposto novo produto.

Seria ético dar falsas esperanças?

Indo um pouco mais além, os critérios de suspensão do ensaio clínico devem estar claros e uma vez que isso ocorra, o próprio fabricante deve garantir a todos os sujeitos de pesquisa a continuidade do seu tratamento. A oferta do produto no mercado não tem relação com a continuidade do tratamento dos sujeitos de pesquisa, além de ser uma etapa posterior à finalização e documentação dos testes. Assim dizem os modernos conceitos de ética em pesquisa clínica.

Diga-se de passagem que impedir o avanço do tumor é uma das características que estão em teste. Ao dizer que a ‘droga impede o crescimento do tumor’, o ‘jornalista’ conclui os estudos antes dos próprios pesquisadores e apresenta o resultado como uma certeza… que não existe. E nos leva ao próximo ponto: o ‘jornalista’ afirma que há um sorteio para determinar que paciente ‘terá acesso ao tratamento’ e qual será submetido ao ‘tratamento ineficaz’. O que significa isso? Voltamos aos campos de concentração?

Para transmitir essa imagem com mais força, duas fotos acompanham a ‘reportagem’. O paciente ‘em tratamento’, confortavelmente sentado em seu jardim, acompanhado de sua família feliz; e o paciente submetido ao ‘tratamento ineficaz’, submetido a internação hospitalar, com vários tubos ligados em seu tronco. A imagem choca e engana: o procedimento hospitalar é rigorosamente o mesmo para ambos. Qualquer coisa diferente disso pode ser questionada metodologicamente. E mais que isso: o paciente submetido ao ‘tratamento’? Colocando dessa forma, a eficácia do medicamento já está provada e nenhum teste deveria ser conduzido. Se está em teste, a eficácia do produto não está comprovada e afirmar o contrário é dar falsas esperanças aos doentes. É então ético, dar falsas esperanças?

Mero material de propaganda

No fim, a ‘reportagem’ sustenta que por haver ‘muitos pacientes implorando’ pela droga, seria justificável que pesquisadores falsificassem dados de pesquisas para que a aprovação da Agência Regulatória fosse mais célere. Como se fosse o órgão regulador o responsável pela ‘demora’ de o medicamento chegar ao mercado, e não o natural e longo caminho de testes ou o não cumprimento de exigências legais por parte dos fabricantes. Como se ‘a quase totalidade de 32 pacientes’ com resultados parcialmente favoráveis fosse o bastante para aprovação de um medicamento, e não a racionalidade dos ensaios clínicos bem desenhados, dimensionados e documentados. Como se o investimento de US$100 milhões para a continuidade de testes que garantem a segurança e a eficácia do medicamento fosse um gasto fútil.

Talvez tivesse sido melhor liberar o Vioxx mais cedo e com menos testes. O ‘jornalista’ deve esquecer dos problemas decorrentes da talidomida, dos coxibs, das estatinas. Deve ter esquecido também que o mundo perfeito não tem uma Farmacovigilância ativa, mas exatamente prescinde dela, pois todos os ensaios clínicos bastariam para responder às questões de uso e segurança do medicamento.

Os ensaios clínicos têm questões que devem ser discutidas e há alguma documentação acerca do ‘duplo padrão’ em questões éticas na pesquisa biomédica. São questões importantes que devem ser debatidas séria, ampla e eticamente. Entretanto, por transmitir essa ideia de que os testes atuais ‘impedem’ o acesso de pacientes a produtos (supostamente seguros) e que as agências reguladoras deveriam flexibilizar o registro dos medicamentos, por transmitir essa ideia sem argumentos sólidos, o texto, que se apresenta como ‘reportagem’, não passa, na verdade, de material de propaganda cuja mensagem é clara: a indústria tem a cura, mas o governo não deixa essa cura chegar no mercado.

Nada disso é verdade.

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Farmacêutico, Rio de Janeiro, RJ