Embaladas pela proposta sedutora de consultores e especialistas, estimuladas a melhorar sua imagem institucional, sua marca, sua reputação ou simplesmente motivadas a cumprir um roteiro tornado quase indispensável pelos instrutores de marketing, empresas das mais variadas atividades econômicas se dedicaram, nos últimos tempos, ao exercício de definir a sua missão, sua visão, seus valores, seus objetivos, seu compromisso com o cliente etc.
Iniciativa louvável quando realmente representa uma melhora na performance das empresas e nos benefícios por elas prestados ao consumidor, o exercício mencionado ainda é útil para animar os funcionários em torno de um projeto comum, unificar o discurso dos dirigentes e conferir um foco mais definido à sua atuação, além de prestar-se a gerar slogans simpáticos e a decorar, com eficiência, as peças publicitárias emitidas para vender seus produtos ou serviços.
Até há bem pouco tempo, a ninguém poderia ocorrer a idéia de que o resultado obtido ao final do referido exercício – um conjunto de recomendações, sugestões, boas intenções e palavras bonitas – pudesse tomar o lugar das leis destinadas a regular a atuação das empresas. Mas parece que os tempos estão mudando…
Igualdade de todos perante a lei
Elaboradas, votadas e aprovadas por meio de procedimento definido pela Constituição Federal, por representantes eleitos diretamente pela população para realizar tal trabalho, as leis desfrutam da legitimidade requerida pelo Estado de Direito para ordenar a convivência coletiva. Com berço no Parlamento, lugar do debate democrático e do pluralismo ideológico, as leis nascem em ambiente público, à luz do dia, e todas as fases de sua gestação podem ser exaustivamente acompanhadas pela sociedade.
Para preservar o prestígio do Direito, a própria Constituição prevê mecanismos que protegem a sociedade de leis inadequadas, estabelecendo os ritos de controle da sua constitucionalidade e a possibilidade de revogá-las parcial ou totalmente. Com tudo isso, é possível concluir que nenhuma crítica ou denúncia sobre o comportamento de deputados e senadores, por mais verdadeira que seja, possa fragilizar a importância da instituição parlamentar e do devido processo legislativo na vida nacional.
Uma vez promulgadas e publicadas, as leis ingressam no ordenamento jurídico e a sua violação poderá ser reprimida, sempre, conforme institui o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição, por meio do recurso ao Poder Judiciário, de cuja apreciação jamais se poderá excluir qualquer lesão ou ameaça a direito, regra que merece ser lembrada toda vez que ocorrerem tentativas de criar aparatos paraestatais para dirimir conflitos e aplicar penalidades.
As leis devem, necessariamente, concretizar os parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal, documento redigido sob intensa participação popular, em Assembléia Nacional Constituinte. De conteúdo já amplamente divulgado e conhecido, a Carta de 1988 consagrou alguns dos ideais mais cultivados pelas sociedades civilizadas, como, por exemplo, o que impõe a igualdade de todos perante a lei.
Uma espécie de ‘regimento interno’
Guiadas por tais princípios, as leis devem enunciar mandamentos que sirvam para todos, sem distinções, e que não premiem categorias empresariais ou setores da vida comercial com privilégios ou imunidades. (Vale lembrar que se em alguma circunstância as leis protegem determinados segmentos da população, como as crianças, os idosos ou as pessoas com deficiência, elas estão, simplesmente, corrigindo uma situação de desequilíbrio ou de vulnerabilidade verificada no meio social para, mais uma vez, fazer valer o critério prioritário da equidade.)
Com base em tal raciocínio, a dedução lógica é a de que carece de qualquer fundamento a proposta que visa a instituir algo chamado de ‘autorregulação’ como instrumento normativo suficiente para substituir a aplicação da lei ou para excluir de seu campo de incidência determinados sujeitos, sobretudo os que lidam com a produção e a veiculação da informação, atos de profunda repercussão no cotidiano da comunidade e dimensão social inequívoca.
Qualquer projeto de ‘código de ética’ escrito por proprietários ou concessionários de meios de comunicação para regular a sua própria conduta é bem-vindo desde que reconheça o seu caráter complementar, subsidiário, acessório. Esta é a posição máxima a que pode aspirar um documento dessa natureza. Ele valerá, tão somente, como uma espécie de ‘regimento interno’, naturalmente submetido às normas jurídicas – estas, sim, dotadas dos requisitos necessários para organizar o relacionamento social.
Garantias contra o arbítrio e a censura
O ponto positivo de tais códigos é que eles podem, em alguns casos, contribuir para o avanço das reflexões sobre os temas por eles abordados, o que merece elogios. Podem, até, eventualmente, levar algumas empresas a aprimorar as suas práticas.
Multiplicar, porém, as especulações em torno da hipotética validade jurídica da denominada ‘autorregulação’ dos meios de comunicação é comportamento que pode induzir a erros graves sobre o verdadeiro significado de termos como ‘liberdade de expressão’ ou ‘liberdade de imprensa’. Ambas são importantes demais para que a coletividade se abstenha de definir os parâmetros para a sua fruição e as conseqüências de seu descumprimento e entregue essa tarefa a agentes econômicos representantes de interesses particulares, que sempre prevalecerão sobre as razões de ordem pública. As eventuais lacunas legais sobre a mídia devem, pois, ser preenchidas pela ação do legislador competente.
Tais liberdades são pilares da democracia constitucional, os seus limites já foram dados e são claros. Elas pertencem ao conjunto de direitos relacionados em artigo específico pela Carta Magna, compondo, em rigorosa condição de igualdade com os demais, uma família de garantias fundamentais que protege o cidadão contra o arbítrio e a censura, a desonra, o desrespeito à imagem e a invasão da intimidade e da vida privada, venham de onde vierem, seja do Estado, seja de comerciantes de conteúdos impressos ou áudio visuais.
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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional pela UFMG e doutorando em Direito Internacional pela Universidade Autônoma de Madri